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domingo, 3 de junho de 2012

BUDAPESTE MINAS e o Jardim das Malditas




Conhaque Presidente é horrível. Vinho Cortesano é uma merda. Mistura os dois e você vê Deus. E no dia seguinte o Diabo. Não é recomendável pra quem vai dirigir. Eu seguia de ressaca pela estrada a 140 km/h. Nenhuma alma por perto. Catalão estava no caminho e teimava em não chegar. O Diabo sentou ao meu lado com seu bafo de noite anterior e jogou na minha cara seu Traçado de paixão e dor. Eu quase me arrependi.

O cigarro e umas goladas de whisky barato impediram o desmaio iminente. Eu estava parado e cidades passavam velozes ao meu lado. A estrada fugia por trás de mim. Não suportei e precisei encostar o carro. Após infestar o banheiro do posto de gasolina pedi uma coca e batizei com o whiskinho e chamei a magrela da garçonete de gostosa e enfiei o pé na estrada novamente.

Travei diálogos com a Morte. A pressão alta e a obesidade e as dores de cabeça eram nossos assuntos prediletos. Mas depois de Araguari expulsei a vadia do carro enquanto Lou Reed & Metallica tocava alto no som e eu gritava pra ela: “continuamos depois, nojenta”.

Cheguei em Uberlândia, a cidade com menos putas per capita de todo oeste do sudeste brasileiro. Deixei as malas no hotel e me carregaram para um coquetel de inauguração de um prédio novo para otários velhos trabalharem suas papeladas até explodirem os coraçõezinhos por debaixo da gravata, suando e desejando as secretárias e as estagiárias e as copeiras e as vigilantes e se contentando com a punheta escondida no banheiro feminino, porque vai ter uma cidade sem puta assim na puta que o pariu.

Uberlândia cresceu como o Brasil e ficou cheia da grana, dos prédios e das avenidas, empreendimentos imponentes, velhotas bem vestidas e moças antenadas, homens tomando vinho italiano e conversando sobre Nova Iorque e disfarçando se acharem chiques, como se ir nos EUA fosse tão normal quanto passar o feriado em Caldas Novas. Mas enquanto a cidade cresceu e os aviões decolaram para todas as direções, as pessoas continuaram as mesmas – apenas com mais pose e mais carimbos nos passaportes.

Um sujeito engravatado mordisca canapés de caviar no coquetel. Beberica seu 12 anos. Diz que ir a Buenos Aires nem é mais viagem internacional e coça sua cabeça de camarão esperando o motorista buscar o Citroën C4 Pallas e não esconde no fundo do olhar a tensão de quem é apenas o que tem, porque suas coisas adquiridas e a adquirir são as únicas que o distraem da merda de vida que leva, convivendo com pessoas que despreza com o que guarda de pior no centro do meio do fundo do ânus.

Eu sou assessor de imprensa, o que implica necessariamente em ser um idiota, alguém desprezível que não tem a menor utilidade, um elo desnecessário entre dois mundos que não interessam a ninguém - o das gravatas e o da caneta e do caderninho. Cumpro meu papel com exuberância, sempre bêbado e disfarçando e sorrindo e apertando as mãos de todos, mantendo firme o olhar na fuça dos otários e no decote de suas mulheres generosas. Não titubeio, não paro pra pensar, bebo tudo que posso no coquetel, finjo me interessar por todos aqueles assuntos e a hierarquia dos idiotas e quando não me suporto mais por me deixar ser essa putinha barata, procuro uma putinha barata pra me refestelar com os iguais.

Após alguns whiskinhos no balcão do bar do hotel parti para minha caçada madrugada adentro. Em Uberlândia não existem tantas casas noturnas de baixo padrão quanto as ruas de seu centro movimentado prometem. Percorro toda a cidade por uma simples putaria e não encontro nada além do vazio frio das ruas desabitadas. Tudo morto, nenhum mendigo a mendigar, nenhum cachorro vadio zanzando por ali. Resolvo voltar pro hotel sem esperança e de repente avisto uma luzinha distante e um vulto feminino e suas pernas desnudas me convidando. Percorro a distância com o coraçãozinho apressado. Encontrei meu lugar, encontrei minhas irmãs.

Entro calado, escolho “Mon Amour, Meu Bem, Ma Femme” na jukebox e parto pra cima da magrinha. Eram quatro presentes, eu, a magrinha, uma velha, uma gorda e um boiadeiro bêbado e rouco. Subo pro quartinho sujo, faço minha sessão de descarrego em silêncio e exausto retorno pro bar. Boto outra do rei na jukebox e puxo assunto com a magrinha:


- Pois é, meu bem, aqui nesse mundinho fechado a gente é incrível! Não estamos sós.

- Você não passa de mais um babaca. Na verdade todo mundo é solitário o tempo todo. Na fila, sentado no ônibus, no vaso sanitário. Todo mundo conhece aquele sentimento otário que nem cachaça, nem buceta, nem salário disfarça: um dia essa porra toda acaba, esteja você em Uberlândia, Araguari ou Uberaba. Mas nem todo triângulo é mineiro e você pode até ouvir o Dark Side Of The Moon inteiro e recusar as voltas do ponteiro e ter a carteira cheia de dinheiro, mas nada nem ninguém no mundo te explica, porque um dia a morte vem e te fode com sua imensa pica.

- Que é isso, novinha? Que é isso? O freezer tá cheio de Cristal gelada, ainda tem uma garrafa de Dreher, tenho 10 conto pra gente ouvir Reginaldo Rossi na jukebox, ou Renato Russo, ou Janis Joplin, ou Nirvana se você preferir. Ainda resta um maço de Derby vermelho. Poxa, daqui a pouco inclusive eu tô aceso outra vez, a piroquinha uivando pra lua... 

- Nem vem que é mais cem!

- Você sabe que eu não tenho. Eu quero é que você venha como você é, como você foi, como uma amiga, como uma velha inimiga, tome seu tempo, se apresse, vem como uma memória envelhecida, vem que eu te juro que não estou armado, eu te juro.

- Sabe, Teotônio, você me surpreendeu. Entrou aqui neném. Agora fica dando gritinho. Volta pra sua. Você fede a suvaco de adolescente. Sua carne tá podre e você faz bem ao livrar o mundo da miséria dos seus bagos. Eu não tenho nada nesse mundo, mas não tô aqui prensando um baseado como se fosse a solução. Eu não perco tempo. Eu já nasci atrasada. Eu vim de Budapeste no inverno e me instalei em Uberlândia. Eu vim de trem e nunca vou voltar. Que ninguém me perdoe, que me atirem todas as pedras. Eu sei o que sou e me basto. O que você é, seu otário?

Budapeste! Deve ser é de Cristalina. Tava brabinha, não deu de graça e voltei pro hotel sem repeteco. Pensei em tudo que a magrinha falou. Eu sou esse proto-punk-beatnik-gonzo-romântico, mas deveria mesmo era comprar um suéter no Parkshopping assim que voltar pra Brasília e assumir logo meu lado boçal, afinal, o que me resta se eu não morri aos 21 e ainda não escrevi meu primeiro romance? O boiadeiro bêbado e rouco falou uma coisa no ouvidinho da magrinha e da velha e da gorda que eu pesquei e trago agora como uma importante lição: "às vezes se fala pra dentro, não se olha nos olhos, se passa uns dias pra baixo pensando nas possibilidades abortadas, nos talentos distraídos. Relembra-se dos passos desengonçados nos percursos sociais, da entrega limitada às ambições, apesar do sentimento profundo que se nutre por tudo, pelo sangue, pelos amigos, pelo país, pelo amor. Pois faça disso sentimento e bote sangue no olho e tente pelo menos acreditar que algo pode ser melhor nessa vida, mas eu sei que ela não é série de TV americana, não tem comerciais, a vida não é pauta pros jornais e a alegria não é sempre que vem nos visitar, na verdade é a tristeza quem mora com a gente, e nem adianta reclamar porque a casa é dela. Você gosta de ver os outros fazerem o que você queria fazer, mas estão todos disfarçando a sensação universal de que falta alguma coisa. E tudo bem a vida é pra sonhar, só não vá entrar em desespero quando acordar no seu quarto, no presente, de pijama, sem glamour. Mas, enfim, o que você pode fazer se não pelo menos celebrar o simples fato de estar vivo, de estar aqui na América do Sul, no Brasil, apesar de tudo?" 



Velho escroto. Não comeu ninguém porque caiu de bêbado, mas deu uma de poeta maldito. Eu do meu lado sigo a longa avenida sem remorso, colhendo minhas flores no jardim e algumas lembranças, ainda que murchas, desviando meu caminho pra não perder o rumo.




Ricardo de Alcântara é escritor de porta de banheiro e contracapa de caderno. Vadio. Inútil. Imbecil. Na superfície um cara simpático que se mantém na média e por ali segue satisfeito tomando sua cervejinha e imaginando todas as mulheres que avista nuas, mas com todo respeito, e nem tanto assim.




6 comentários:

  1. Muito interessante, minha imaginação voou com o texto.. Curti muito.

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  2. Ah,rapaz, uq seria de nos se não fossem as Uberlândias da vida.

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  3. Como disse um sábio amigo meu, se vc nunca se embebedou de conhaque é pq nunca passou necessidade. Ou algo assim.

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  4. Ei minha gente, sabia que você ia arrasar! Vejo que sabe muito sobre o processo, kkk.
    já tenho uma cena, ARRASOU!

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  5. Parabéns Rico! O conto ficou foda...
    Não para não, ansioso pelo próximo

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  6. A partir do momento em que li "eminente" onde deveria estar "iminente", deixou de me interessar.

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