Inofensivos programas de entretenimento televisivo poderiam ser considerados rituais de sofrimento?
Consideremos aqui jogos competitivos em que participantes se submetem a TUDO para vencer como rituais de sofrimento. Tais rituais e mecanismos de dominação estão em vários produtos televisivos da indústria cultural brasileira, com especial atenção ao maior deles, o Big Brother Brasil, no ar há treze anos. Também podemos abranger programas e filmes de Hollywood que perpetuam a mesma lógica brutal. Assim como no BBB, o assassino Jigsaw da franquia Jogos Mortais, por exemplo, não almeja a morte/eliminação de suas vítimas: ele quer que elas sobrevivam. Mais que isso, que sobrevivam a qualquer preço.
Para além dos inúmeros recordes acumulados pelo programa Big Brother Brasil, é digno de atenção o espírito que, ao longo de três meses anuais, toma o público. A disputa hipnotiza as cidades como um espectro: sem entender como, sabemos nomes e acontecidos, o programa toma o ar e sufoca. É onipresente; está em todas as mídias e em todas as conversas; suscita contendas nos ônibus e táxis. Mas é na internet que o comprometimento do público toma corpo: sites, grupos de debate, blogs, salas de bate-papo, tuitagens, comunidades virtuais e campanhas inflamadas para a eliminação de fulano ou beltrano proliferam e deixam o rastro do dinheiro, trabalho e tempo oferecidos gratuitamente ao show de horror. Em espaços de reclusão, que pela própria dimensão já inspiram pesquisas acadêmicas, é unânime o desejo do embate feroz entre os aprisionados. Neles, impera o princípio muito bem formulado pelo organizador da rinha: importa muito mais a queda que a salvação.
Não lidamos aqui com um
ritual como outro qualquer, não se trata de uma festa ou do consumo, ambos
cerimoniais oferecidos aos deuses do prazer. Trata-se de algo mais perturbador,
pois o que se vê nos reality shows é a proliferação de rituais de sofrimento.
Quais são as molas que
movem esse lado fake e nem por isso menos real do mundo em que vivemos? Onde
estão as roldanas que dirigem as cordas, quem são as figuras que elas agitam,
como o conjunto se fecha sobre si mesmo sem deixar lacunas?
Apesar de permanecer na
sociedade o debate em torno de um de seus discursos de origem, o mote do
espetáculo da realidade (reality show) e seu maior apelo junto aos telespectadores é a
concorrência, não o voyeurismo. É esse o fundamento que atrai o nosso olhar,
pois é o fundamento de nossa reprodução social.
O princípio violento do
BBB não é oculto, pelo contrário, o próprio programa faz questão de afirmá-lo
constantemente – e funciona inúmeras vezes como propaganda – ao enfatizar o
caráter eliminatório e cruel do jogo. Cada edição impõe a seus participantes
situações mais árduas. Não é um jogo de quem ganha. É um jogo de eliminação.
Esse saber generalizado, no entanto, não impede que uns se submetam e outros
castiguem, nem que aqueles que se submetem também castiguem. Pelo contrário, a
participação é a pedra fundamental do espetáculo. Mais que a aceitação passiva
desse princípio nem um pouco subjacente, o programa conquista o engajamento
ativo, frequentemente maníaco, nessa engrenagem de fazer sofrer.
Big Brother é um jogo cruel, em que o público decide quem sai. Ele dá o poder de o cara que está em casa ir matando pessoas, cortando cabeças. Não é um jogo de quem ganha. Para o cara de casa, é um jogo de quem você elimina.
Big Brother é um jogo cruel, em que o público decide quem sai. Ele dá o poder de o cara que está em casa ir matando pessoas, cortando cabeças. Não é um jogo de quem ganha. Para o cara de casa, é um jogo de quem você elimina.
A dificuldade de se
escrever a respeito da ideologia hoje é que para o juízo bastaria a descrição,
mas essa já não o (co)move. Se uma pessoa se mostra crítica ou mesmo condoída diante
do sofrimento que se avoluma nesse tipo de programa de TV, a ela caberá a pecha
de idiota (ou invejosa!). A dominação se mostra a céu aberto em dia claro, sem
que se renuncie à sua prática. Todo discurso a respeito de justiça, liberdade,
igualdade e até mesmo bondade é descartado com virilidade em nome de uma dura
realidade.
Não são poucas as vezes em que é colocado o problema do sofrimento
ao qual são submetidos os participantes e a resposta é: “Mas foram eles que se
voluntariaram”. Uma das ideias centrais que sustentam o estado de direito é a
da inalienabilidade: não se pode abrir mão da dignidade, por exemplo, mesmo que
se queira. Em tese, nenhum contrato assinado pelos participantes de reality
shows poderia ser válido em qualquer lugar no qual a democracia e os direitos
humanos vigoram. E o problema jurídico posto por essas produções não responde
sequer ao paradoxo dos direitos humanos colocado por Hannah Arendt, segundo a
qual tais direitos só podem ter vigência quando levados a cabo pelos estados
nacionais, ou seja, os apátridas não os têm. Os participantes são cidadãos
brasileiros, alemães, norte-americanos, holandeses, argentinos e um longo etc.
A vida à disposição da produção de entretenimento a que se assiste em reality
shows é um índice mais do que transparente de que vivemos em um estado de
exceção permanente, pulverizado e onipresente.