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sábado, 16 de junho de 2012

Os amores de Ariovaldo


Ariovaldo mal conseguia conter a excitação. Com o coração acelerado, sentia uma conhecida vertigem atravessar o corpo. Dividia um sofá de três lugares com Cleiton e Adalton. Sentados no chão, sobre almofadas, Bruno e Rafael jogavam Street Fighter. Enquanto via Guile dar uma surra em Ken, Ariovaldo pensou na Chun-Li. “Se eu escolher ela vai pegar mal”, refletiu. Decidiu pelo Blanka. “Dou umas apeladas e depois entrego a luta.” Com algumas rodadas de folga, Ariovaldo poderia se ausentar da sala sem deixar suspeitas.

Blanka tomou um perfect no segundo round. “Assim não dá, o Bruno é muito apelão”, reclamou Ariovaldo, fingindo desapontamento. Os outros riam. Passou o controle para Cleiton. “Vou dar uma mijada”, avisou. “Leva o meu”, gracejou Adalton. Ariovaldo nem ouviu. Mal sentia os próprios passos, incertos e vacilantes em direção ao banheiro – o banheiro da casa de Janaína. Sim, porque como todo amigo de infância que se preze, Bruno tinha uma irmã mais velha.

Primeiro amor
Janaína era a típica menina dos sonhos de filme norte-americano. Loirinha de olhos verdes, os cabelos longos sempre soltos e esvoaçantes como em um eterno comercial de xampu, a irmã de Bruno povoava os sonhos de Ariovaldo desde que ele se conhecia por gente. Na casa dele tinha até uma foto dos dois tomando banho juntos. Não havia dia em que Ariovaldo não olhasse para aquela imagem dos dois bebês com certa melancolia. Tinha a vizinha do lado como personagem principal de sua sessão da tarde particular.

Não que Janaína tenha sido sempre inatingível. A diferença de um ano entre os dois não impediu que eles tivessem uma infância em comum. Com o resto das crianças da rua, brincavam de taco, esconde-esconde, passa-anel, bate-manteiga. Sozinhos, brincavam de casinha. Enquanto o resto dos meninos jogava bola, Ariovaldo era um preocupado pai solteiro cuja filha estudava na mesma escola em que Janaína era a professorinha.

O tempo acabou por afastar os dois. Aos 14 anos, um a menos que Janaína, Ariovaldo havia sido rebaixado a amigo do irmão, de quem era um ano mais velho. Bruno era um rapazinho detestável, mas não havia outro jeito. Era a única forma de continuar por perto, de vez ou outra poder flagrá-la saindo do banho, cabelos ainda pingando, enrolada numa toalha. Não fosse a amizade com Bruno, Ariovaldo não teria sido o primeiro da rua a ver Janaína com o famoso vestido curto de alcinha, que ela usava sem sutiã. O mesmo vestido que, por obra do vento sul, mudou a sua vida.    

Trancado no banheiro
Ariovaldo estava parado em frente ao cesto de roupa suja. Não que tivesse dúvidas sobre o que iria fazer. Estava decidido. Lembrou-se do dia em que o vento sul levantou o vestido de Janaína. Respirou fundo. Com cuidado, tirou a tampa do cesto. Todos os barulhos daquele banheiro pareciam amplificados. “Uma camiseta do Pernalonga, uma cueca do Bruno, um calçolão da dona Marisa”, memorizou. Tudo teria que voltar para o lugar certo. Finalmente, entre uma camisa da Oktoberfest e outra do Figueirense, encontrou-a. Branquinha, com rendas sobre o elástico e um lacinho na frente, exatamente como se lembrava.

Olhava a calcinha com um ar solene. Segurando-a com ambas as mãos, examinava cada detalhe. O laço um pouco de lado, o fio solto na lateral, a pequena mancha amarelada na parte de dentro. Achou que fosse desmaiar. De súbito, passou a esfregar a calcinha violentamente no rosto. Aspirava com força, descompassadamente. Janaína invadia seus pensamentos em um turbilhão de imagens: seios empinados, bicos rosados, pentelhos aloirados. De repente, tinha dez anos e estava ao lado dela no banco da igreja. O vestido que ela usava na primeira comunhão era branco como a calcinha. Do alto, o Cristo crucificado tinha um olhar de reprovação.

Relacionamento sério
Bruno nunca teve um amigo tão fiel. Ariovaldo estava sempre por perto, nunca o criticava, aguentava todas as suas gozações. Marginal iniciante, Bruno tinha no vizinho um cúmplice silencioso. Um sujeito que nunca iria falar pra ninguém dos doces que ele roubava nas Americanas ou dos pequenos sadismos praticados contra gatos e cachorros do bairro. E Ariovaldo ainda lhe fazia as lições de casa. “Que bicho mais otário”, pensava. Bruno não conseguia entender o sorriso satisfeito do amigo. “Vai cagar de novo, porra?”  

Ariovaldo não poderia nunca ser confundido com um cheirador de calcinhas vulgar. Seu onanismo era cercado de rituais, cada punheta tinha a sua própria história. O enredo variava conforme o figurino. A calcinha vermelha que Janaína havia usado no aniversário de uma amiga, por exemplo, exigia um jantar à luz de velas. A branquinha de algodão, das aulas de tênis, pedia algo mais selvagem, como uma cachoeira ou um acampamento. Havia todo um universo dentro do banheiro de Janaína. 

Separação
Não conseguiu acreditar quando Bruno lhe falou da mudança. Brasília. “Que tipo de gente se muda pra Brasília?”, pensou. Com o olhar perdido, Ariovaldo se sentou no meio-fio. Lembrou-se da nova calcinha de Janaína, preta de rendinhas, pouquíssimas vezes cheirada. Estavam em novembro. Dali a dois meses faria um ano daquela primeira tarde no banheiro. A proximidade do solstício de dezembro foi outro detalhe que lhe doeu fundo na carne. O verão é a primavera dos cheiradores de calcinha. Ao seu lado, Bruno estava comovido com tamanha desolação. “Amigo é isso aí.”

No banheiro da própria casa, Ariovaldo olhava para a pequena peça de algodão. Havia roubado-a em sua última visita à casa de Janaína.  Depois de quatro meses, a clássica calcinha branca com rendinhas no elástico já tinha perdido o lacinho e o odor. Estéril, a pequena mancha amarelada lhe enchia de saudades. Guardou-a de volta no saquinho ziplock. Iria fazer companhia a quatro playmobils e duas dúzias de poemas depressivos na caixa de sapatos onde guardava suas mais caras lembranças. Era hora de partir pra outra.

Diarreia
O pequeno inventário de vizinhas era promissor. Obcecado por Janaína, Ariovaldo nunca havia reparado nas irmãs dos outros amigos. Baixinha de olhos azuis, a irmã mais nova de Adalton merecia uma visita. Aline, irmã de Cleiton, exalava experiência do alto de seus 19 anos. Rafael, o gordinho do final da rua, tinha em casa duas precoces gêmeas de 13 aninhos. Recobrado o ânimo, Ariovaldo repassava mentalmente o roteiro de suas visitas. O mundo lá fora, afinal, era um lugar cheio de possibilidades.  

Os novos amores duraram pouco. Não por falta de afinco de Ariovaldo, é verdade. Os outros amigos é que não tinham saco para tamanha dedicação. Além disso, achavam cada vez mais estranho aquele sujeito que passava horas no banheiro. Evitado por todos, Ariovaldo passou a ser conhecido como Diarreia. Em seu desespero, chegou a frequentar a casa de um vizinho de dez anos. Filho único, o japonesinho tinha uma mãe das mais ajeitadas. Ariovaldo já se imaginava em um duelo com o verdureiro pelo amor de dona Keiko quando foi educadamente proibido de voltar à casa dos Tanaka.

Funcionário do mês
Ariovaldo era o orgulho da família. Havia começado a trabalhar numa lavanderia na adolescência, pagou o cursinho pré-vestibular do próprio bolso. Primeiro a chegar e último a sair, ainda na faculdade, tornou-se gerente. Agora, aos 29 anos, era dono da sua própria rede de lavanderias. Descobriu no ramo a sua vocação. Tinha uma seção especial para peças íntimas. Cuidava delas pessoalmente. Chegou mesmo a ser convidado para prestar consultoria a uma fabrica de sabão em pó. “E eu não dava nada por esse guri”, reconhecia o pai.

Os anos de lavanderia tornaram Ariovaldo um homem vivido. Conheceu todo tipo de mulher. Apaixonou-se por algumas, desiludiu-se com outras. No começo, via em cada calcinha a esperança de um novo amor. A universitária ruiva que levaria para um festival de cinema pós-iugoslavo, a mocinha tímida com quem dividiria um sundae, a jovem prostituta que tiraria da vida. Do amor romântico, passou a uma fase mais promíscua. Sorria envergonhado ao se lembrar da grande suruba que fez com os collants de uma companhia de balé. Mas isso também tinha ficado para trás.

Cheirar calcinhas não o animava mais. Ariovaldo já não tentava adivinhar os aromas de cada nova cliente pelo rosto. Havia abandonado até um relacionamento mais sério, coisa de uns cinco anos.   No dia em que, numa quarta-feira de cinzas, não se apressou em revirar a fantasia de uma passista, notou que o negócio era sério. Definitivamente faltava alguma coisa na sua vida. Sozinho, em casa, retirou a fita crepe que envolvia a caixa de sapatos das suas lembranças. Com cuidado, abriu o amarelado saquinho ziplock. Sentiu a mesma vertigem de 15 anos atrás ao passar no rosto a calcinha branca com rendinhas no elástico. Precisava rever Janaína.

O reencontro
Ariovaldo ainda pensava em uma desculpa para a visita quando a porta do apartamento da 409 Norte se abriu. Aos 30 anos, Janaína estava mais linda que nunca. O vestido podia não ser aquele mesmo curto de alcinha, mas ela continuava dispensando o sutiã. “Quanto tempo, Ariovaldo”, derretia-se. “Quando mamãe me contou que você estaria na cidade eu nem acreditei. Como estão as coisas? Fiquei sabendo que você é dono de uma rede de lavanderias”, continuava. Ariovaldo tinha os olhos vidrados no pescoço de Janaína. Sempre escondido pelos longos cabelos loiros, agora ele era revelado por um coque. Nunca um pescoço lhe pareceu tão erótico. “Bem que eu poderia começar a cheirar cachecóis”, pensou.   

Estava sentado na sala de Janaína há mais de duas horas. Recém-divorciada, ela contava a história de sua vida. Em detalhes.  Falou do ex-marido que não valia nada, do lindo casal de filhos que cresceria sem pai, do irmão preso na Papuda – “Quem poderia imaginar?” –, do trabalho burocrático em um ministério qualquer. Ariovaldo se lembrou com saudades do tempo em que sua ida ao banheiro de Janaína dependia apenas do infortúnio de Blanka. “Estou devendo uma ida a Florianópolis. Quem sabe eu não apareço pra te visitar, né?”, sugeriu. Ariovaldo limitou-se a assentir com a cabeça.

Depois de quatro xícaras de café e três copos d’água, Ariovaldo realmente precisava ir ao banheiro. Nunca pensou que, depois de tantos anos, a primeira coisa que faria no banheiro de Janaína seria mijar. “Fazer o quê?”, resignou-se. Estava baixando a tampa da privada quando olhou através do box.  Ariovaldo empalideceu. Como um louco, pôs-se de joelhos e começou a revirar o cesto de roupa suja. Não queria aceitar a verdade. Exausto, sentou-se no chão. Na sua frente, a calcinha lavada pendurada na torneira do chuveiro. Tirou do bolso a calcinha branca com rendinhas no elástico. Usou-a para secar suas lágrimas.

Daniel Ludwich é um ultra-romântico confesso, mas jura que só revira o cesto de roupa suja da própria mulher


quinta-feira, 14 de junho de 2012

Noite nas escadas...



 Sento nos degraus do 24 horas. A cabeça roda. Parece se perder na fumaça que sai trêmula da boca seca de dor. Observo-a se desintegrando no ar sereno. Desintegro-me. Só os pulmões se aquecem. A noite é amena, mas a pele se engelha no continente gélido da alma transtornada. Tremo. Tento chorar (eu preciso chorar!). Só o coração lacrimeja, em vermelho sangue. Sangro. Antes sangrassem os olhos! E nenhum líquido escorre o rosto para espalhar o desespero que me sucumbe.
- Eleonora !!!!! – grito em silêncio, atormentado...
Tento incomodar os amigos em ligações e mensagens de texto. Ninguém escuta. É madrugada de segunda-feira e a cidade dorme cansada. Exausto, resolvo entrar no supermercado para comprar cerveja. Escolho duas bavarias, que é pra beber com amargura. Retorno aos degraus e me deparo com a escadaria tomada por vagabundos. Procuro um local para me isolar e beber solitariamente. Acendo meu cigarro e termino por me denunciar. Aproxima-se o primeiro. Talvez branco, talvez ruivo, impossível era definir se a pele avermelhada e manchada vinha do DNA ou do sol escaldante da labuta opressora. Pede-me um cigarro.
- Só tenho palheiro.
- Coisa boa! Esse é do bom! – agradece com um toque em meu ombro.
Um silêncio momentâneo...
- Tu tá bem? – minto com a cabeça em afirmação.
Os olhos me entregavam, mas o vagabundo soube entender a economia nas palavras. Lado a lado as fumaças se encontravam em baforadas longas, até se perderem no infinito escuro. Dez minutos sem ruídos e o diálogo é retomado com uma proposta tentadora:
- Olha! Eu tô sem maconha aqui, mas se tu quiser pedra eu posso te conseguir alguma...
Fico estático. Por impulso veria satanás naquela noite, mas um fio de razão me impede de ir conhecer o poço fundo e ardente. Digo, então, ao moço maltrapilho, que estava satisfeito com a cerveja quente...
- Você é que está certo. A gente só precisa de um pega pra virar escravo da desgraçada. Mas eu vou te dizer uma coisa. Ela é boa. Essa maldita tem o poder de nos fazer deus e diabo em segundos de delírio intenso.
Galego era daqueles malandros de boa lábia. Inteligente, filósofo da pilantragem, conhecia História e contava estórias para quem quisesse ouvi-lo com paciência. Tinha pseudônimos. Era conhecido também como Marx, e apresentou-se a mim dessa forma. Sabia das utopias do velho barbudo e o tinha como profeta dos fodidos. Atento, ouvi seus monólogos por alguns instantes. Falou-me do inconsciente humano, das músicas de Raul Seixas, das trevas noturnas e das luzes que iluminam o homem...
- Tá vendo essa luz que vem da marquise? Ela ilumina tudo isso aqui, nos permitindo enxergar. Há luz por todo lado, mas a gente tem que ser como um laser, pra clarear o ponto certo. O homem, pra ser grande, tem que ter foco...
Nesse instante aproxima-se mais um vadio, o homem das muletas. Não soube seu nome, mesmo por que era conhecido por todos pela sua condição: um aleijado, um mendigo de muletas. Parecia amargurado, muito embora o palheiro que me tomou tenha lhe trazido certa calmaria. Não o suficiente para satisfazê-lo, é bem verdade. Precisava de cachaça, a santa água. Propõe, então, que juntássemos moedas para uma pinga barata.
- Quanto é a bendita? – pergunto interessado em beber algo corrosivo.
- É quatro reais, acabei de olhar lá dentro – responde instantaneamente o ébrio manco.
Ofereço a bebida em agradecimento à boa companhia. Galego se candidata a comprar e lhe entrego uma nota de cinco. A essa altura da madrugada estávamos em seis ou sete, quando então se aproxima Espiga e seu fiel escudeiro. O cão negro arrasta uma pata, mas ainda assim desvia de toda malandragem para, com ardor, subir dez degraus para se deitar ao meu lado. Os pêlos brancos ao redor dos olhos contrastavam com a capa escura, denunciando a fadiga das andanças diárias. Acaricio-o e ele me olha com olhos tão ternos que ameaço chorar (eu preciso chorar!). Engulo seco as gotas salgadas a fim de não demonstrar fraqueza...
- Helena!!!!! – grito em silêncio, atormentado...
Só o cão me entende...
Espiga não tinha os dentes da frente, mas sorria com muita beleza. Tinha o corpo esguio e carregava latas de alumínio num carrinho furtado de supermercado. A pilantragem me esvazia a carteira de cigarros e levanto para comprar mais. Espiga me impede.
- Eu tenho uma carteira aqui. Você fuma Derby? – indaga com simplicidade.
- Claro! – minto sem pestanejar.
Retiro do maço um cigarro amassado.
- Pode pegar mais um! Aqui é tudo de todo mundo...
O semblante de Espiga me abre um sorriso (há solidariedade na pilantragem). Galego finalmente retorna com a 51 e alguns copos descartáveis. Não me devolve o troco de um real (há malandragem na pilantragem). Não ligo. A mesa está montada. Derby e 51! Uma fossa! Um sonho!
- Um brinde às nossas mazelas! – propõe Galego aos mendigos boêmios.
Todos respondem em uníssono enquanto a cachaça queima a garganta no gole virado de vez única.
- Esse mundo é um mundo de mentiras! – grita Galego com uma risada sombria.
- Lá em cima é tudo terra de porco! – blasfema babando o homem das muletas.
- Não fala assim não! Se a gente tá aqui, a gente tem é que agradecer... – pondera Espiga com ternura infinda.
Galego se senta ao meu lado. Canta versos de música e me abraça em devaneio. Observo-o sorrir e contar estórias em frases bem articuladas. Fala dos tempos em que era quisto por todos, das viagens, das putas enlouquecidas que o arranhavam e o empobreciam. Atrevo-me a perguntar:
- E o que te faz estar aqui, Marx?
A pergunta o cala. O sorriso aberto estreita-se e o olhar eufórico fenece. No silêncio triste nossos olhos fitam-se em comunhão e sofrimento. Não era preciso dizer nada. As notas mudas do pilantra ecoaram longe na amargura da lembrança...
- Uma mulher... – balbuciou melancólico.
O olhar desvia-se e Galego em solavanco pede um novo brinde.
- Às mulheres! Rainhas de nossa desgraça!
Todos brindam. Os mendigos se alegram e começam a gritar nomes incessantemente.
- À Amélia! Àquela ingrata que me abandonou – bradou o homem das muletas.
- À Marlene! A melhor boqueteira do P-sul! – vibrou um outro.
- À Mariazinha! Que tá no céu agora rezando por mim... – clamou nostálgico o bom Espiga.
Solange, Valdenice, Joana, Rita, Luzia... Todas devidamente lembradas na confraria dos pilantras. Entre nomes de mulheres e cantorias escuto as desventuras de cada um. Meu corpo se acalenta. Tremo. Espiga me fala sorrindo de Mariazinha, de como era boa, e os meus olhos se encharcam. Reluto em chorar (eu preciso chorar!).
- Berenice!!!!! – grito em silêncio, atormentado...
Enquanto nos enlouquecemos Álvares se contorce no leito sepulcral, lamentando não ter vivido mais duas centenas de anos para brindar conosco. Solfiere, Bertram e os taverneiros de outrora invejariam esse encontro. Mendigos da madrugada, famintos de donzelas e sedentos de cachaça. Spleen e Derby! Uma fossa! Um sonho!
Ameaço levantar. A pinga seca me corrói o estômago. Seco-me. Levanto atônito sustentando o vômito. Corro para um canto solitário, tentando me camuflar. Galego percebe e se põe ao meu lado. Despejo na terra desidratada o maná que vem do inferno. O cheiro fétido não incomoda o amigo. Suo frio. Transpiro a acidez da melancolia. Deito e deixo que o cão me lamba e se alimente da iguaria divina. Galego sorri da situação...
- É meu amigo...51 não é pra qualquer um não. É bebida de vagabundo, de quem mora com o capeta...
Espiga me dá de sua água. Todos riem do meu estado. Rio com eles. Mais um brinde e decido ir embora. Despeço-me de cada um com um abraço forte, fraterno. Convidam-me para voltar sempre e retribuo com mais uma 51 de cortesia. Um latido me interrompe. Acaricio o cão uma última vez...
- Qual o nome dele?
- Esse aí é o Lobão, meu companheiro... – responde Espiga cheio de orgulho.
Emocionado deixo o 24 horas e caminho cambaleante de volta a casa, ainda desacreditado da noite apoteótica que tivera, da noite nas escadas...
Espiga, Galego...Homens de muletas! Bêbados mutilados da madrugada!...
Profundamente ébrio abro a porta e percebo que a velha vitrola esquecida ligada arranhava a voz lânguida de Vicente Celestino. Faço-o cantar novamente em grande altura. Resgato da parede próxima ao leito um retrato. Observo-a pela última vez. Tão pálida! Tão linda! Deito na cama beijando enlouquecidamente a imagem dela. Enterro-a no criado-mudo. A cabeça roda. Ameaço chorar (eu preciso chorar!)
- Letícia!!!!! – choro em silêncio, embriagado...




Djallys Dietz é daqueles embromadores da madrugada. Bebe só e não fuma Derby. Quis ser tudo e eventualmente, quando ébrio, o é. E assim vai cambaleando... até o segundo em que o câncer o encerrar.



O Ébrio
(Vicente Celestino)

Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer
Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou
Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou
Só nas tabernas é que encontro meu abrigo
cada colega de infortúnio é um grande amigo
Que embora tenham como eu seus sofrimentos
Me aconselham e aliviam meus tormentos
Já fui feliz e recebido com nobreza até
Nadava em ouro e tinha alcova de cetim
E a cada passo um grande amigo que depunha fé
E nos parentes... confiava, sim!
E hoje ao ver-me na miséria tudo vejo então
O falso lar que amava e que a chorar deixei
Cada parente, cada amigo, era um ladrão
Me abandonaram e roubaram o que amei
Falsos amigos, eu vos peço, imploro a chorar
Quando eu morrer, à minha campa nenhuma inscrição
Deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar
Este ébrio triste e este triste coração
Quero somente que na campa em que eu repousar
Os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
E suas lágrimas de dor ao peito amigo 




quarta-feira, 13 de junho de 2012

Je t'attends


             Então, escrever em um dia tão especial como o dia dos namorados pra quem namora em um blog ULTRAROMANTICO. Contarei então uma história, um conto, historietas de Alice. Alice e Dimitri. Dimitri e Alice. Porque tudo parece uma experiência francesa? 



Alice e Dimitri


Alice come borboletas. Borboletas que passam o corpo nu de uma antiga Punk reprimida. Respira. Recolhe-se. E ele, Dimitri, aquele que não sabe. Sinal, vestígio, prova. Alice apaixonada. Insegura patética. O patético poético, a poesia chula de falar de si. Chá. Chá. Café. Café. Respira. Suspiro. Empírico jeito de amar. Empório de borboletas. Emposta voz silêncio flutuante. Fluem borboletas e não dissipem. Não dispersem. Disse Alice, sim. Eu vou. Vai saracoteando, dançando nas pontas das pedras. Brim Pelitizado Alice se cobre cor cobre. Cobra beijos. Seios. Meios para borboletas. Retira meia sombria. Sóbria. Pele macia. Branca. Borboletas em Alice. Alice. Dimitri. Diz. Disse. Diga. Di. Dimitri. Fica. Fim.

Gostou?
Visite: ashistorietasdealice.wordpress.com


Oque dizer sobre ultra romances, sobre contos de amores e corações partidos? Um dia após o dia dos namorados. Encanta-me o ponto iminente. Ao beijo.  Ao toque. Ao sexo. A poesia, os detalhes. O flerte.  Deixo então uma música. Essa que tem passado pelos meus momentos iminentes.



Escolho então um trecho:

Je t'attends là, je t'attends là,
Je t'attends là sous les étoiles,
Le ciel est si beau.
Et j'entends le chant de mon marin,
Sur l’océan, sous une pluie de souvenirs.
Alors je m'endors,
Bercée par les voix et vents du nord,
Et je rêve de ton sourire


Post by: Elise Hirako 



domingo, 10 de junho de 2012

Quadra do Beira-Mar


Como um bom moleque da periferia, passei boa fase da minha meninice na rua, mais precisamente jogando bola na “quadra do Beira-Mar”. Fugia diariamente dos deveres escolares para uma partida de “dez ou dois” e pedia quinta próxima feliz da vida na expectativa de passar a noite sem apanhar de ninguém. Nem dos moleques mais velhos de rua, nem da minha mãe, em casa.

A quadra ficava numa praça em frente ao prédio residencial Beira-Mar, que tinha uma igreja evangélica no subsolo. Tirando o culto e uma padaria solitária, tudo era rodeado por botecos, sem contar as drogas que eram vendidas como balinhas (vide mapa). Eram bares para todos os gostos. Maiores, menores, cheios, vazios, sujos, não tão sujos, alguns com sinuca, outros truco, e uma variedade inconcebível de artifícios alcoólicos.  Ali eu formava o meu caráter diariamente.


O lugar era tomado por bêbados, que mesmo com esposas em casa, eram casados com a boemia. Velhos cansados, barrigudos com artérias entupidas e prazo de validade estourado, não raro alcoólatras. Entre eles, meu pai. Todo dia papai fazia hora extra nos bares da praça. Enquanto eu imitava o Romário na pelada, minha verdadeira referência masculina estava ali do lado embriagando-se com os amigos. Eu queria ser um deles, e era só questão de tempo. O ciclo natural da vida era um dia acabar estacionando naqueles balcões e dali não sair jamais. Não era uma escolha, mas sim uma realidade.

Meu pai transitava por várias pocilgas da praça, mas sua preferida era a do Zé Mineiro. Conterrâneos, cruzeirenses e parceiros de pescarias, era ali que o velho se sentia em casa, talvez até mais do que lá em casa. No intervalo da peleja, eu ia falar com ele e pegar água pra galera. E do convívio diário vem a familiaridade.

Em um lugar em que moleques eram desprezados pelos bêbados, eu era o filho do homem! Meu pai era um bancário burocrata que dava crédito para aquele bando de comerciantes alcoolizados. O respeito que os encachaçados tinham por ele sobrava um pouco para mim. Eu entrava no Zé Mineiro sozinho e saia com uma coca-cola sem pagar! Eu era foda!

Tentava usar isso ao meu favor para me impor sobre os moleques e me aproximar, em vão, das meninas do Beira-Mar. Eram pirralhas que desciam em cardume do prédio e ficavam nos olhando de longe. Eu sempre retribuia o olhar com altas doses de platonismo. Na minha mente elas estavam apenas de calcinha, ou nuas, e tinham o corpo da Emanuelle, rainha do soft porn, deusa dos cabelos crespos que me fazia dormir mais tarde no final de semana e me levava para o mundo mágico e emocionante da masturbação pré-internet. Minha timidez nunca me permitiu passar daquela troca de olhares.

A praça mudava um pouco no domingo à noite, quando os bêbados passavam com suas esposas e filhos em busca de redenção no culto evangélico do Beira-Mar ou na missa da paróquia São José, que ficava mais longe. Era sagrado e profano no mesmo olhar, na mesma praça. Os mais apegados ainda saudavam de longe os pagãos que não largavam o bar nem para pedir perdão.

Pausa para o Rock

O som rolava sem parar na praça com aquela classe típica da periferia que ditou os anos 90. Muito pagode, funk, axé e sertanejo. Leandro e Leonardo eram reis e Rap Brasil era o funk “bom” do cara que só queria ser feliz. Tinha uns três moleques com apelido de Molejo. Só Pra Contrariar era obrigatório. Gostava da ideia de me afogar num copo de cerveja, para encontrar nela uma solução. E nesse contexto musical unânime, seguia eu convencido pela massa.

Sei que a bíblia já salvou muita gente, mas o que me redimiu foi O Descobrimento do Brasil. Ganhei esse CD de uma prima fã de Legião Urbana (não de rock, só de Legião). Ouvi uma vez, achei uma merda. Outra vez, tinha algo ali. Quando me dei conta, o CD tocava repetidamente. Em alguns dias já sabia cantar “Perfeição” e “Vamos Fazer um Filme” sem precisar do encarte.

Como um iniciante se preze, decorei “Faroeste Cabloco” em dois dias, mesmo sem saber o que era “roconha”. “Ascendente em escorpião” desconheço o significado até hoje. Adorava a parte do “general de dez estrelas, que fica atrás da mesa com o cú na mão”. Depois veio Titãs, Paralamas, Beatles, e por aí foi. Não precisa dizer que aquela porra toda de antes não fazia mais sentido nenhum.

Voltando para o bar

O tempo passava e a dinâmica da praça era a mesma, mas não pra mim. Talvez as drogas tivessem aumentado, pois de vez em quando tínhamos que jogar bola sob a vigilância de vários policiais e, do nada, um conhecido traficante sumia. Eu não me importava, até porque o meu jogo estava cada vez mais parecido com o do Romário. O problema é que o ensino médio estava chegando e minha mãe não acreditava mais nas minhas desculpas para ficar na rua a noite toda.

Um dia cheguei em casa e vi uma camisa oficial do cruzeiro na sala. Agradeci meu pai, feliz da vida, e descobri que a jóia não era minha, mas um presente de aniversário para o Zé Mineiro. Argumentei que ele não ligava pra isso, pois era um cara simples e camarada. A camisa podia ficar pra mim. Foi quando meu pai informou que o Zé estava em internado no hospital com cirrose crônica. Cirrose? Que clichê! O dono do bar que morre de cirrose é o pior clichê da vida! Pois aconteceu. Zé Mineiro morreu alguns dias depois e, no auge da tristeza do meu pai, a única coisa que consegui falar pra ele foi: “Pai, você chegou a dar aquela camisa do Cruzeiro pro Zé?”.



Guilherme Rosa é um bancário burocrata como o pai, mas sem um pingo do respeito que o velho tinha.