Por que há necessidade em eleger uma Figura Central dentro de um Grupo
de Teatro? É realmente primordial ter uma face para representar o grupo? Como é
esta história de que o grupo "é uma tal pessoa"? Se um grupo fosse tal pessoa,
haveria sentido chamá-lo de grupo? Estas perguntas iniciais são questões muito
caras ao Grupo Liquidificador e debatemos constantemente. O desejo deste
texto é desmistificar um pouco o imaginário comum sobre a quase obrigatoriedade
da existência da Figura Central e de uma estrutura hierárquica verticalizada na
dinâmica de trabalho de grupo, afinal já existem dezenas de dinâmicas de grupos
teatrais. Ou mesmo novos modelos de qualquer outro tipo de agrupamento.
Passada a fase de formação, nosso Grupo promove o debate permanente
desta questão estrutural há pelo menos três anos, mas ainda assim temos uma
imagem distorcida perante os outros. Procuram elencar entre nós uma figura que
responda pelo grupo inteiro, como um chefe. Como isto tem sido reincidente, estas
linhas são necessárias, não por irritação, mas como esclarecimento maior de
nossos processos e formatos horizontalizados. Implantamos radicalmente o
conceito de teatro colaborativo, mesmo que isto custe algumas desvantagens,
como velocidade dos procedimentos, esta é uma opção consciente que fizemos. Grupo é
grupo, não tem uma face, tem uma simbiose de faces. Cada integrante precisa
ter total consciência de seu protagonismo dentro do funcionamento do coletivo, uma espécie de unimultiplicidade. Costumamos dizer que somos como um Megazord
(robô do programa Power Rangers), cada um com sua potência individual colocada
para formação de um corpo gigante mais potente.
Quem é a figura central? Continuemos percorrendo o texto pra procurá-la.
Podemos elocubrar que isto provém de uma série de micro e macro
estruturas sociais existentes, talvez venha daí o costume dos trabalhos de
escola, grupos capengas, com um ou dois líderes carregando o resto
para ganhar nota. Há também a estruturação de família nuclear, papai, mamãe,
filhinhos. Os progenitores e sua prole. Outra estrutura comum: a Pátria. Com a
figura do líder salvador, do pai (ou mãe) da nação, reproduzindo a família
tradicional do campo micro no macro estatal. Estas ultimas noções grupais citadas
são quase um mantra repetido no inconsciente inventado por nosso amigo Freud:
"Minha pátria, minha mamãezinha querida." "Meu pai chefe
governante." No grupo de teatro nós costumamos até a nos chamar por família vez ou
outra, mas num novo tipo de formação, não uma família nuclear, acreditando assim estarmos apontando para novos tempos, novas estruturas. Não teremos
aqui um Pai Castrador nem mesmo uma Matriarca.
Vivemos numa Fratria. Um conjunto de irmãos mantendo a relação fraternal constante. Queremos e construímos todos os dias esse lugar.
Tudo caminha mais devagar, pois decidimos em grupo até a cor da coleira do
cavalo do bandido. Mas nos traz uma satisfação imensa no fim das contas, uma
satisfação de pertencimento sem igual. O tal do empoderamento.
Por onde anda a figura central?
Existem legítimos Grupos Teatrais que naturalmente elegem um líder. Ou
por admiração intelectual, ou por respeito simbólico e assim por diante. Outros
grupos levam no próprio nome o nome do dono. Existem também aqueles grupos com um ou
dois integrantes que contratam o restante dos profissionais envolvidos nos
espetáculos como "prestadores de serviço". Existem até os que elegem
a figura central por assembléias. Nestes grupos de estrutura arcaica, ou
tradicional/secular (depende da carga semântica que queira dar), há uma figura
como o "dono/chefe" da companhia.
O grupo de figura central eventualmente pode ficar fragilizado quando esta
figura não estiver passando por uma boa fase. Ou tiver algum estudo/projeto
pessoal pra realizar. Neste caso não existe uma balança nas tarefas, apenas uma espécie de
Atlas carregando todo o grande peso do mundo nas costas.
E o diretor não é a figura de destaque dentro de um grupo?
Sobre a direção, há uma tendência de eleger o diretor como o chefe intelectual que talvez no nosso país seja influência do histórico brasileiro dos anos 80/90. Aquele que dá a palavra final, aquele que tem as ideias e faz-se corpo presente
nos atores mas de corpo ausente na cena. Ainda por cima existe a mística de que
a direção é realizada por um ser iluminado que salvará os atores como se fosse um
xamã ou um pastor de rebanho, e trará a resolução de todos os problemas físicos
e metafísicos para os anseios do elenco. Neste tipo de colaboração artística
que tentamos implantar constantemente no Grupo Liquidificador, a direção é só mais uma função da
engrenagem, fazendo a unificação estética das diversas propostas, quase que um
coordenador de organograma e de humores, não como um centro de criação, já que
o centro neste caso muda de lugar de acordo com o momento da montagem.
Direção é também a arte de espectador. Afinal ele é o primeiro espectador.
Um proto-espectador. É comum também pensar a direção como a necessidade
de formatação do ator à uma linguagem de encenação concebida por um indivíduo.
Buscamos olhar por um outro viés, a direção tem a função de libertação do ator,
para que este não precise ter aquele olhar de fora no momento do jogo. Mas
antes de cair pra cena, a encenação é amplamente discutida em conjunto. Nos consideramos mais como um grupo de encenadores. O que para alguns pode soar como fraqueza de decisões ou
multiplicidade de gêneros, para nós é justamente o contrário, aqui mora o lugar
de potência.
Augusto Boal já dizia:
"Um poeta pode acordar no meio da noite e escrever um belo poema, basta inspiração. Um pintor pode pintar quadros em minutos ou anos, como se sentir melhor. Mas artistas de artes coletivas não podem convocar expectadores às três da madrugada, alegando que só nesse momento sentiram a inspiração vindo.
Teatro é arte coletiva. Respeito e disciplina são essenciais!"
Paradoxalmente, são as restrições as que mais fortalecem e permitem a liberdade. Liberdade que é construída somada à liberdade do outro e não como diz aquele ditado meio fascistóide de que "nossa liberdade começa quando termina a do outro". Nossa arte teatral tem a ver com atrito, a produção da diferença a partir do encontro de
figuras de mundos e origens díspares. Para nós, sem este movimento de
desequilíbrio e equilíbrio não há descoberta, não há invenção. Aliás, este desequilíbrio é o
próprio movimento que nos interessa, não o caos, mas a dança com o kaos.
Nos processos artísticos do Liquidificador, ninguém manda na sala de
ensaio. A obra vai falar mais alto no fim das contas, e todos estão jogando ali
pela obra. Entre os participantes desse tipo de processo torna-se primordial o
diálogo infinito, a sedução, o ceder, o endurecer, o abrir, fechar, voltar
atrás, desapegar. É um movimento de fricção constante interessante, um
complexo exercício brutal de democracia com todos seus percalços. Prevalecendo
a potência da obra/processo.
Mesmo se a direção artística do grupo estivesse a cargo das decisões de
uma pessoa só (o que não é o nosso caso), a gestão continuaria numa dinâmica
compartilhada. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. O grupo não
é, necessariamente, do diretor. Façamos sempre esta reflexão relativizada para
cada grupo, antes de sair tomando conclusões pré-concebidas a procura da figura
central dentro de grupos mais horizontalizados, pois nestes casos ela não existe e não há
relativização para isso.
Essa dinâmica é relevante que seja amplamente divulgada, pois acredito não
sirva apenas para grupos teatrais. O micro também cabe em grandes escalas. Este
modelo numa empresa qualquer pode tornar seus empreendedores conscientes de seu
processo produtivo do início ao fim. Num estado democrático, pode gerar
cidadãos conscientes de suas próprias responsabilidades e direitos, sem precisar dizer que a culpa é da mãe toda vez que se indignar. Porque o pai e a mãe estariam mortos neste caso. Por fim, diretor não é o
salvador da patria nem o psicólogo dos atores, todos integrantes são
responsabilizados conscientemente por todas as questões. Um teatro de autoria
radicalmente coletiva.