Ariovaldo mal conseguia conter a
excitação. Com o coração acelerado, sentia uma conhecida vertigem atravessar o
corpo. Dividia um sofá de três lugares com Cleiton e Adalton. Sentados no chão,
sobre almofadas, Bruno e Rafael jogavam Street Fighter. Enquanto via Guile dar
uma surra em Ken, Ariovaldo pensou na Chun-Li. “Se eu escolher ela vai pegar
mal”, refletiu. Decidiu pelo Blanka. “Dou umas apeladas e depois entrego a
luta.” Com algumas rodadas de folga, Ariovaldo poderia se ausentar da sala sem
deixar suspeitas.
Blanka tomou um perfect no segundo round. “Assim não dá,
o Bruno é muito apelão”, reclamou Ariovaldo, fingindo desapontamento. Os outros
riam. Passou o controle para Cleiton. “Vou dar uma mijada”, avisou. “Leva o
meu”, gracejou Adalton. Ariovaldo nem ouviu. Mal sentia os próprios passos,
incertos e vacilantes em direção ao banheiro – o banheiro da casa de Janaína.
Sim, porque como todo amigo de infância que se preze, Bruno tinha uma irmã mais
velha.
Primeiro amor
Janaína era a típica menina dos
sonhos de filme norte-americano. Loirinha de olhos verdes, os cabelos longos
sempre soltos e esvoaçantes como em um eterno comercial de xampu, a irmã de
Bruno povoava os sonhos de Ariovaldo desde que ele se conhecia por gente. Na casa
dele tinha até uma foto dos dois tomando banho juntos. Não havia dia em que
Ariovaldo não olhasse para aquela imagem dos dois bebês com certa melancolia. Tinha
a vizinha do lado como personagem principal de sua sessão da tarde particular.
Não que Janaína tenha sido sempre
inatingível. A diferença de um ano entre os dois não impediu que eles tivessem
uma infância em comum. Com o resto das crianças da rua, brincavam de taco,
esconde-esconde, passa-anel, bate-manteiga. Sozinhos, brincavam de casinha. Enquanto
o resto dos meninos jogava bola, Ariovaldo era um preocupado pai solteiro cuja
filha estudava na mesma escola em que Janaína era a professorinha.
O tempo acabou por afastar os
dois. Aos 14 anos, um a menos que Janaína, Ariovaldo havia sido rebaixado a
amigo do irmão, de quem era um ano mais velho. Bruno era um rapazinho
detestável, mas não havia outro jeito. Era a única forma de continuar por
perto, de vez ou outra poder flagrá-la saindo do banho, cabelos ainda pingando,
enrolada numa toalha. Não fosse a amizade com Bruno, Ariovaldo não teria sido o
primeiro da rua a ver Janaína com o famoso vestido curto de alcinha, que ela
usava sem sutiã. O mesmo vestido que, por obra do vento sul, mudou a sua vida.
Trancado no banheiro
Ariovaldo estava parado em frente
ao cesto de roupa suja. Não que tivesse dúvidas sobre o que iria fazer. Estava
decidido. Lembrou-se do dia em que o vento sul levantou o vestido de Janaína. Respirou
fundo. Com cuidado, tirou a tampa do cesto. Todos os barulhos daquele banheiro pareciam
amplificados. “Uma camiseta do Pernalonga, uma cueca do Bruno, um calçolão da
dona Marisa”, memorizou. Tudo teria que voltar para o lugar certo. Finalmente,
entre uma camisa da Oktoberfest e outra do Figueirense, encontrou-a.
Branquinha, com rendas sobre o elástico e um lacinho na frente, exatamente como
se lembrava.
Olhava a calcinha com um ar
solene. Segurando-a com ambas as mãos, examinava cada detalhe. O laço um pouco
de lado, o fio solto na lateral, a pequena mancha amarelada na parte de dentro.
Achou que fosse desmaiar. De súbito, passou a esfregar a calcinha violentamente
no rosto. Aspirava com força, descompassadamente. Janaína invadia seus
pensamentos em um turbilhão de imagens: seios empinados, bicos rosados,
pentelhos aloirados. De repente, tinha dez anos e estava ao lado dela no banco
da igreja. O vestido que ela usava na primeira comunhão era branco como a
calcinha. Do alto, o Cristo crucificado tinha um olhar de reprovação.
Relacionamento sério
Bruno nunca teve um amigo tão fiel.
Ariovaldo estava sempre por perto, nunca o criticava, aguentava todas as suas
gozações. Marginal iniciante, Bruno tinha no vizinho um cúmplice silencioso. Um
sujeito que nunca iria falar pra ninguém dos doces que ele roubava nas
Americanas ou dos pequenos sadismos praticados contra gatos e cachorros do
bairro. E Ariovaldo ainda lhe fazia as lições de casa. “Que bicho mais otário”,
pensava. Bruno não conseguia entender o sorriso satisfeito do amigo. “Vai cagar
de novo, porra?”
Ariovaldo não poderia nunca ser
confundido com um cheirador de calcinhas vulgar. Seu onanismo era cercado de
rituais, cada punheta tinha a sua própria história. O enredo variava conforme o
figurino. A calcinha vermelha que Janaína havia usado no aniversário de uma
amiga, por exemplo, exigia um jantar à luz de velas. A branquinha de algodão, das
aulas de tênis, pedia algo mais selvagem, como uma cachoeira ou um acampamento.
Havia todo um universo dentro do banheiro de Janaína.
Separação
Não conseguiu acreditar quando
Bruno lhe falou da mudança. Brasília. “Que tipo de gente se muda pra Brasília?”,
pensou. Com o olhar perdido, Ariovaldo se sentou no meio-fio. Lembrou-se da
nova calcinha de Janaína, preta de rendinhas, pouquíssimas vezes cheirada. Estavam
em novembro. Dali a dois meses faria um ano daquela primeira tarde no banheiro.
A proximidade do solstício de dezembro foi outro detalhe que lhe doeu fundo na
carne. O verão é a primavera dos cheiradores de calcinha. Ao seu lado, Bruno
estava comovido com tamanha desolação. “Amigo é isso aí.”
No banheiro da própria casa,
Ariovaldo olhava para a pequena peça de algodão. Havia roubado-a em sua última visita
à casa de Janaína. Depois de quatro
meses, a clássica calcinha branca com rendinhas no elástico já tinha perdido o
lacinho e o odor. Estéril, a pequena mancha amarelada lhe enchia de saudades. Guardou-a
de volta no saquinho ziplock. Iria fazer companhia a quatro playmobils e duas
dúzias de poemas depressivos na caixa de sapatos onde guardava suas mais caras
lembranças. Era hora de partir pra outra.
Diarreia
O pequeno inventário de vizinhas
era promissor. Obcecado por Janaína, Ariovaldo nunca havia reparado nas irmãs
dos outros amigos. Baixinha de olhos azuis, a irmã mais nova de Adalton merecia
uma visita. Aline, irmã de Cleiton, exalava experiência do alto de seus 19 anos.
Rafael, o gordinho do final da rua, tinha em casa duas precoces gêmeas de 13
aninhos. Recobrado o ânimo, Ariovaldo repassava mentalmente o roteiro de suas
visitas. O mundo lá fora, afinal, era um lugar cheio de possibilidades.
Os novos amores duraram pouco. Não
por falta de afinco de Ariovaldo, é verdade. Os outros amigos é que não tinham
saco para tamanha dedicação. Além disso, achavam cada vez mais estranho aquele
sujeito que passava horas no banheiro. Evitado por todos, Ariovaldo passou a
ser conhecido como Diarreia. Em seu desespero, chegou a frequentar a casa de um
vizinho de dez anos. Filho único, o japonesinho tinha uma mãe das mais
ajeitadas. Ariovaldo já se imaginava em um duelo com o verdureiro pelo amor de
dona Keiko quando foi educadamente proibido de voltar à casa dos Tanaka.
Funcionário do mês
Ariovaldo era o orgulho da
família. Havia começado a trabalhar numa lavanderia na adolescência, pagou o
cursinho pré-vestibular do próprio bolso. Primeiro a chegar e último a sair,
ainda na faculdade, tornou-se gerente. Agora, aos 29 anos, era dono da sua
própria rede de lavanderias. Descobriu no ramo a sua vocação. Tinha uma seção
especial para peças íntimas. Cuidava delas pessoalmente. Chegou mesmo a ser
convidado para prestar consultoria a uma fabrica de sabão em pó. “E eu não dava
nada por esse guri”, reconhecia o pai.
Os anos de lavanderia tornaram
Ariovaldo um homem vivido. Conheceu todo tipo de mulher. Apaixonou-se por algumas,
desiludiu-se com outras. No começo, via em cada calcinha a esperança de um novo
amor. A universitária ruiva que levaria para um festival de cinema pós-iugoslavo,
a mocinha tímida com quem dividiria um sundae, a jovem prostituta que tiraria
da vida. Do amor romântico, passou a uma fase mais promíscua. Sorria
envergonhado ao se lembrar da grande suruba que fez com os collants de uma
companhia de balé. Mas isso também tinha ficado para trás.
Cheirar calcinhas não o animava
mais. Ariovaldo já não tentava adivinhar os aromas de cada nova cliente pelo
rosto. Havia abandonado até um relacionamento mais sério, coisa de uns cinco
anos. No dia em que, numa quarta-feira de cinzas,
não se apressou em revirar a fantasia de uma passista, notou que o negócio era
sério. Definitivamente faltava alguma coisa na sua vida. Sozinho, em casa,
retirou a fita crepe que envolvia a caixa de sapatos das suas lembranças. Com
cuidado, abriu o amarelado saquinho ziplock. Sentiu a mesma vertigem de 15 anos
atrás ao passar no rosto a calcinha branca com rendinhas no elástico. Precisava
rever Janaína.
O reencontro
Ariovaldo ainda pensava em uma
desculpa para a visita quando a porta do apartamento da 409 Norte se abriu. Aos
30 anos, Janaína estava mais linda que nunca. O vestido podia não ser aquele mesmo
curto de alcinha, mas ela continuava dispensando o sutiã. “Quanto tempo,
Ariovaldo”, derretia-se. “Quando mamãe me contou que você estaria na cidade eu
nem acreditei. Como estão as coisas? Fiquei sabendo que você é dono de uma rede
de lavanderias”, continuava. Ariovaldo tinha os olhos vidrados no pescoço de Janaína.
Sempre escondido pelos longos cabelos loiros, agora ele era revelado por um
coque. Nunca um pescoço lhe pareceu tão erótico. “Bem que eu poderia começar a
cheirar cachecóis”, pensou.
Estava sentado na sala de Janaína
há mais de duas horas. Recém-divorciada, ela contava a história de sua vida. Em
detalhes. Falou do ex-marido que não
valia nada, do lindo casal de filhos que cresceria sem pai, do irmão preso na
Papuda – “Quem poderia imaginar?” –, do trabalho burocrático em um ministério
qualquer. Ariovaldo se lembrou com saudades do tempo em que sua ida ao banheiro
de Janaína dependia apenas do infortúnio de Blanka. “Estou devendo uma ida a
Florianópolis. Quem sabe eu não apareço pra te visitar, né?”, sugeriu. Ariovaldo
limitou-se a assentir com a cabeça.
Depois de quatro xícaras de café
e três copos d’água, Ariovaldo realmente precisava ir ao banheiro. Nunca pensou
que, depois de tantos anos, a primeira coisa que faria no banheiro de Janaína
seria mijar. “Fazer o quê?”, resignou-se. Estava baixando a tampa da privada
quando olhou através do box. Ariovaldo
empalideceu. Como um louco, pôs-se de joelhos e começou a revirar o cesto de
roupa suja. Não queria aceitar a verdade. Exausto, sentou-se no chão. Na sua
frente, a calcinha lavada pendurada na torneira do chuveiro. Tirou do bolso a
calcinha branca com rendinhas no elástico. Usou-a para secar suas lágrimas.
Daniel Ludwich é um ultra-romântico confesso, mas jura que só revira o
cesto de roupa suja da própria mulher
SENSACIONAL!!
ResponderExcluirCaramba! Q texto massa!!
ResponderExcluirMuito Bom!!!!
ResponderExcluirMuito legal!
ResponderExcluirDan, com certeza, mas com muita certeza, você entra no hall dos melhores textos do blog com este aqui.
ResponderExcluirMuito bom mesmo. Vejo você falando: "Quem poderia imaginar? kkk. Achei a sua cara. Achei romântico. Achei devasso. Tá liquidificado... Meus parabéns!