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sábado, 16 de junho de 2012

Os amores de Ariovaldo


Ariovaldo mal conseguia conter a excitação. Com o coração acelerado, sentia uma conhecida vertigem atravessar o corpo. Dividia um sofá de três lugares com Cleiton e Adalton. Sentados no chão, sobre almofadas, Bruno e Rafael jogavam Street Fighter. Enquanto via Guile dar uma surra em Ken, Ariovaldo pensou na Chun-Li. “Se eu escolher ela vai pegar mal”, refletiu. Decidiu pelo Blanka. “Dou umas apeladas e depois entrego a luta.” Com algumas rodadas de folga, Ariovaldo poderia se ausentar da sala sem deixar suspeitas.

Blanka tomou um perfect no segundo round. “Assim não dá, o Bruno é muito apelão”, reclamou Ariovaldo, fingindo desapontamento. Os outros riam. Passou o controle para Cleiton. “Vou dar uma mijada”, avisou. “Leva o meu”, gracejou Adalton. Ariovaldo nem ouviu. Mal sentia os próprios passos, incertos e vacilantes em direção ao banheiro – o banheiro da casa de Janaína. Sim, porque como todo amigo de infância que se preze, Bruno tinha uma irmã mais velha.

Primeiro amor
Janaína era a típica menina dos sonhos de filme norte-americano. Loirinha de olhos verdes, os cabelos longos sempre soltos e esvoaçantes como em um eterno comercial de xampu, a irmã de Bruno povoava os sonhos de Ariovaldo desde que ele se conhecia por gente. Na casa dele tinha até uma foto dos dois tomando banho juntos. Não havia dia em que Ariovaldo não olhasse para aquela imagem dos dois bebês com certa melancolia. Tinha a vizinha do lado como personagem principal de sua sessão da tarde particular.

Não que Janaína tenha sido sempre inatingível. A diferença de um ano entre os dois não impediu que eles tivessem uma infância em comum. Com o resto das crianças da rua, brincavam de taco, esconde-esconde, passa-anel, bate-manteiga. Sozinhos, brincavam de casinha. Enquanto o resto dos meninos jogava bola, Ariovaldo era um preocupado pai solteiro cuja filha estudava na mesma escola em que Janaína era a professorinha.

O tempo acabou por afastar os dois. Aos 14 anos, um a menos que Janaína, Ariovaldo havia sido rebaixado a amigo do irmão, de quem era um ano mais velho. Bruno era um rapazinho detestável, mas não havia outro jeito. Era a única forma de continuar por perto, de vez ou outra poder flagrá-la saindo do banho, cabelos ainda pingando, enrolada numa toalha. Não fosse a amizade com Bruno, Ariovaldo não teria sido o primeiro da rua a ver Janaína com o famoso vestido curto de alcinha, que ela usava sem sutiã. O mesmo vestido que, por obra do vento sul, mudou a sua vida.    

Trancado no banheiro
Ariovaldo estava parado em frente ao cesto de roupa suja. Não que tivesse dúvidas sobre o que iria fazer. Estava decidido. Lembrou-se do dia em que o vento sul levantou o vestido de Janaína. Respirou fundo. Com cuidado, tirou a tampa do cesto. Todos os barulhos daquele banheiro pareciam amplificados. “Uma camiseta do Pernalonga, uma cueca do Bruno, um calçolão da dona Marisa”, memorizou. Tudo teria que voltar para o lugar certo. Finalmente, entre uma camisa da Oktoberfest e outra do Figueirense, encontrou-a. Branquinha, com rendas sobre o elástico e um lacinho na frente, exatamente como se lembrava.

Olhava a calcinha com um ar solene. Segurando-a com ambas as mãos, examinava cada detalhe. O laço um pouco de lado, o fio solto na lateral, a pequena mancha amarelada na parte de dentro. Achou que fosse desmaiar. De súbito, passou a esfregar a calcinha violentamente no rosto. Aspirava com força, descompassadamente. Janaína invadia seus pensamentos em um turbilhão de imagens: seios empinados, bicos rosados, pentelhos aloirados. De repente, tinha dez anos e estava ao lado dela no banco da igreja. O vestido que ela usava na primeira comunhão era branco como a calcinha. Do alto, o Cristo crucificado tinha um olhar de reprovação.

Relacionamento sério
Bruno nunca teve um amigo tão fiel. Ariovaldo estava sempre por perto, nunca o criticava, aguentava todas as suas gozações. Marginal iniciante, Bruno tinha no vizinho um cúmplice silencioso. Um sujeito que nunca iria falar pra ninguém dos doces que ele roubava nas Americanas ou dos pequenos sadismos praticados contra gatos e cachorros do bairro. E Ariovaldo ainda lhe fazia as lições de casa. “Que bicho mais otário”, pensava. Bruno não conseguia entender o sorriso satisfeito do amigo. “Vai cagar de novo, porra?”  

Ariovaldo não poderia nunca ser confundido com um cheirador de calcinhas vulgar. Seu onanismo era cercado de rituais, cada punheta tinha a sua própria história. O enredo variava conforme o figurino. A calcinha vermelha que Janaína havia usado no aniversário de uma amiga, por exemplo, exigia um jantar à luz de velas. A branquinha de algodão, das aulas de tênis, pedia algo mais selvagem, como uma cachoeira ou um acampamento. Havia todo um universo dentro do banheiro de Janaína. 

Separação
Não conseguiu acreditar quando Bruno lhe falou da mudança. Brasília. “Que tipo de gente se muda pra Brasília?”, pensou. Com o olhar perdido, Ariovaldo se sentou no meio-fio. Lembrou-se da nova calcinha de Janaína, preta de rendinhas, pouquíssimas vezes cheirada. Estavam em novembro. Dali a dois meses faria um ano daquela primeira tarde no banheiro. A proximidade do solstício de dezembro foi outro detalhe que lhe doeu fundo na carne. O verão é a primavera dos cheiradores de calcinha. Ao seu lado, Bruno estava comovido com tamanha desolação. “Amigo é isso aí.”

No banheiro da própria casa, Ariovaldo olhava para a pequena peça de algodão. Havia roubado-a em sua última visita à casa de Janaína.  Depois de quatro meses, a clássica calcinha branca com rendinhas no elástico já tinha perdido o lacinho e o odor. Estéril, a pequena mancha amarelada lhe enchia de saudades. Guardou-a de volta no saquinho ziplock. Iria fazer companhia a quatro playmobils e duas dúzias de poemas depressivos na caixa de sapatos onde guardava suas mais caras lembranças. Era hora de partir pra outra.

Diarreia
O pequeno inventário de vizinhas era promissor. Obcecado por Janaína, Ariovaldo nunca havia reparado nas irmãs dos outros amigos. Baixinha de olhos azuis, a irmã mais nova de Adalton merecia uma visita. Aline, irmã de Cleiton, exalava experiência do alto de seus 19 anos. Rafael, o gordinho do final da rua, tinha em casa duas precoces gêmeas de 13 aninhos. Recobrado o ânimo, Ariovaldo repassava mentalmente o roteiro de suas visitas. O mundo lá fora, afinal, era um lugar cheio de possibilidades.  

Os novos amores duraram pouco. Não por falta de afinco de Ariovaldo, é verdade. Os outros amigos é que não tinham saco para tamanha dedicação. Além disso, achavam cada vez mais estranho aquele sujeito que passava horas no banheiro. Evitado por todos, Ariovaldo passou a ser conhecido como Diarreia. Em seu desespero, chegou a frequentar a casa de um vizinho de dez anos. Filho único, o japonesinho tinha uma mãe das mais ajeitadas. Ariovaldo já se imaginava em um duelo com o verdureiro pelo amor de dona Keiko quando foi educadamente proibido de voltar à casa dos Tanaka.

Funcionário do mês
Ariovaldo era o orgulho da família. Havia começado a trabalhar numa lavanderia na adolescência, pagou o cursinho pré-vestibular do próprio bolso. Primeiro a chegar e último a sair, ainda na faculdade, tornou-se gerente. Agora, aos 29 anos, era dono da sua própria rede de lavanderias. Descobriu no ramo a sua vocação. Tinha uma seção especial para peças íntimas. Cuidava delas pessoalmente. Chegou mesmo a ser convidado para prestar consultoria a uma fabrica de sabão em pó. “E eu não dava nada por esse guri”, reconhecia o pai.

Os anos de lavanderia tornaram Ariovaldo um homem vivido. Conheceu todo tipo de mulher. Apaixonou-se por algumas, desiludiu-se com outras. No começo, via em cada calcinha a esperança de um novo amor. A universitária ruiva que levaria para um festival de cinema pós-iugoslavo, a mocinha tímida com quem dividiria um sundae, a jovem prostituta que tiraria da vida. Do amor romântico, passou a uma fase mais promíscua. Sorria envergonhado ao se lembrar da grande suruba que fez com os collants de uma companhia de balé. Mas isso também tinha ficado para trás.

Cheirar calcinhas não o animava mais. Ariovaldo já não tentava adivinhar os aromas de cada nova cliente pelo rosto. Havia abandonado até um relacionamento mais sério, coisa de uns cinco anos.   No dia em que, numa quarta-feira de cinzas, não se apressou em revirar a fantasia de uma passista, notou que o negócio era sério. Definitivamente faltava alguma coisa na sua vida. Sozinho, em casa, retirou a fita crepe que envolvia a caixa de sapatos das suas lembranças. Com cuidado, abriu o amarelado saquinho ziplock. Sentiu a mesma vertigem de 15 anos atrás ao passar no rosto a calcinha branca com rendinhas no elástico. Precisava rever Janaína.

O reencontro
Ariovaldo ainda pensava em uma desculpa para a visita quando a porta do apartamento da 409 Norte se abriu. Aos 30 anos, Janaína estava mais linda que nunca. O vestido podia não ser aquele mesmo curto de alcinha, mas ela continuava dispensando o sutiã. “Quanto tempo, Ariovaldo”, derretia-se. “Quando mamãe me contou que você estaria na cidade eu nem acreditei. Como estão as coisas? Fiquei sabendo que você é dono de uma rede de lavanderias”, continuava. Ariovaldo tinha os olhos vidrados no pescoço de Janaína. Sempre escondido pelos longos cabelos loiros, agora ele era revelado por um coque. Nunca um pescoço lhe pareceu tão erótico. “Bem que eu poderia começar a cheirar cachecóis”, pensou.   

Estava sentado na sala de Janaína há mais de duas horas. Recém-divorciada, ela contava a história de sua vida. Em detalhes.  Falou do ex-marido que não valia nada, do lindo casal de filhos que cresceria sem pai, do irmão preso na Papuda – “Quem poderia imaginar?” –, do trabalho burocrático em um ministério qualquer. Ariovaldo se lembrou com saudades do tempo em que sua ida ao banheiro de Janaína dependia apenas do infortúnio de Blanka. “Estou devendo uma ida a Florianópolis. Quem sabe eu não apareço pra te visitar, né?”, sugeriu. Ariovaldo limitou-se a assentir com a cabeça.

Depois de quatro xícaras de café e três copos d’água, Ariovaldo realmente precisava ir ao banheiro. Nunca pensou que, depois de tantos anos, a primeira coisa que faria no banheiro de Janaína seria mijar. “Fazer o quê?”, resignou-se. Estava baixando a tampa da privada quando olhou através do box.  Ariovaldo empalideceu. Como um louco, pôs-se de joelhos e começou a revirar o cesto de roupa suja. Não queria aceitar a verdade. Exausto, sentou-se no chão. Na sua frente, a calcinha lavada pendurada na torneira do chuveiro. Tirou do bolso a calcinha branca com rendinhas no elástico. Usou-a para secar suas lágrimas.

Daniel Ludwich é um ultra-romântico confesso, mas jura que só revira o cesto de roupa suja da própria mulher


5 comentários:

  1. Dan, com certeza, mas com muita certeza, você entra no hall dos melhores textos do blog com este aqui.
    Muito bom mesmo. Vejo você falando: "Quem poderia imaginar? kkk. Achei a sua cara. Achei romântico. Achei devasso. Tá liquidificado... Meus parabéns!

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