Sento nos degraus do 24 horas. A cabeça roda. Parece se
perder na fumaça que sai trêmula da boca seca de dor. Observo-a se
desintegrando no ar sereno. Desintegro-me. Só os pulmões se aquecem. A noite é
amena, mas a pele se engelha no continente gélido da alma transtornada. Tremo.
Tento chorar (eu preciso chorar!). Só o coração lacrimeja, em vermelho sangue.
Sangro. Antes sangrassem os olhos! E nenhum líquido escorre o rosto para
espalhar o desespero que me sucumbe.
- Eleonora !!!!! – grito em silêncio, atormentado...
Tento incomodar os amigos em ligações e mensagens de texto.
Ninguém escuta. É madrugada de segunda-feira e a cidade dorme cansada. Exausto,
resolvo entrar no supermercado para comprar cerveja. Escolho duas bavarias, que
é pra beber com amargura. Retorno aos degraus e me deparo com a escadaria
tomada por vagabundos. Procuro um local para me isolar e beber solitariamente. Acendo
meu cigarro e termino por me denunciar. Aproxima-se o primeiro. Talvez branco,
talvez ruivo, impossível era definir se a pele avermelhada e manchada vinha do
DNA ou do sol escaldante da labuta opressora. Pede-me um cigarro.
- Só tenho palheiro.
- Coisa boa! Esse é do bom! – agradece com um toque em meu
ombro.
Um silêncio momentâneo...
- Tu tá bem? – minto com a cabeça em afirmação.
Os olhos me entregavam, mas o vagabundo soube entender a
economia nas palavras. Lado a lado as fumaças se encontravam em baforadas
longas, até se perderem no infinito escuro. Dez minutos sem ruídos e o diálogo
é retomado com uma proposta tentadora:
- Olha! Eu tô sem maconha aqui, mas se tu quiser pedra eu
posso te conseguir alguma...
Fico estático. Por impulso veria satanás naquela noite, mas
um fio de razão me impede de ir conhecer o poço fundo e ardente. Digo, então,
ao moço maltrapilho, que estava satisfeito com a cerveja quente...
- Você é que está certo. A gente só precisa de um pega pra
virar escravo da desgraçada. Mas eu vou te dizer uma coisa. Ela é boa. Essa
maldita tem o poder de nos fazer deus e diabo em segundos de delírio intenso.
Galego era daqueles malandros de boa lábia. Inteligente,
filósofo da pilantragem, conhecia História e contava estórias para quem
quisesse ouvi-lo com paciência. Tinha pseudônimos. Era conhecido também como
Marx, e apresentou-se a mim dessa forma. Sabia das utopias do velho barbudo e o
tinha como profeta dos fodidos. Atento, ouvi seus monólogos por alguns
instantes. Falou-me do inconsciente humano, das músicas de Raul Seixas, das
trevas noturnas e das luzes que iluminam o homem...
- Tá vendo essa luz que vem da marquise? Ela ilumina tudo
isso aqui, nos permitindo enxergar. Há luz por todo lado, mas a gente tem que
ser como um laser, pra clarear o
ponto certo. O homem, pra ser grande, tem que ter foco...
Nesse instante aproxima-se mais um vadio, o homem das
muletas. Não soube seu nome, mesmo por que era conhecido por todos pela sua
condição: um aleijado, um mendigo de muletas. Parecia amargurado, muito embora
o palheiro que me tomou tenha lhe trazido certa calmaria. Não o suficiente para
satisfazê-lo, é bem verdade. Precisava de cachaça, a santa água. Propõe, então,
que juntássemos moedas para uma pinga barata.
- Quanto é a bendita? – pergunto interessado em beber algo
corrosivo.
- É quatro reais, acabei de olhar lá dentro – responde
instantaneamente o ébrio manco.
Ofereço a bebida em agradecimento à boa companhia. Galego se
candidata a comprar e lhe entrego uma nota de cinco. A essa altura da madrugada
estávamos em seis ou sete, quando então se aproxima Espiga e seu fiel escudeiro.
O cão negro arrasta uma pata, mas ainda assim desvia de toda malandragem para,
com ardor, subir dez degraus para se deitar ao meu lado. Os pêlos brancos ao
redor dos olhos contrastavam com a capa escura, denunciando a fadiga das
andanças diárias. Acaricio-o e ele me olha com olhos tão ternos que ameaço
chorar (eu preciso chorar!). Engulo seco as gotas salgadas a fim de não
demonstrar fraqueza...
- Helena!!!!! – grito em silêncio, atormentado...
Só o cão me entende...
Espiga não tinha os dentes da frente, mas sorria com muita
beleza. Tinha o corpo esguio e carregava latas de alumínio num carrinho furtado
de supermercado. A pilantragem me esvazia a carteira de cigarros e levanto para
comprar mais. Espiga me impede.
- Eu tenho uma carteira aqui. Você fuma Derby? – indaga com
simplicidade.
- Claro! – minto sem pestanejar.
Retiro do maço um cigarro amassado.
- Pode pegar mais um! Aqui é tudo de todo mundo...
O semblante de Espiga me abre um sorriso (há solidariedade
na pilantragem). Galego finalmente retorna com a 51 e alguns copos
descartáveis. Não me devolve o troco de um real (há malandragem na pilantragem).
Não ligo. A mesa está montada. Derby e 51! Uma fossa! Um sonho!
- Um brinde às nossas mazelas! – propõe Galego aos mendigos
boêmios.
Todos respondem em uníssono enquanto a cachaça queima a
garganta no gole virado de vez única.
- Esse mundo é um mundo de mentiras! – grita Galego com uma
risada sombria.
- Lá em cima é tudo terra de porco! – blasfema babando o
homem das muletas.
- Não fala assim não! Se a gente tá aqui, a gente tem é que
agradecer... – pondera Espiga com ternura infinda.
Galego se senta ao meu lado. Canta versos de música e me
abraça em
devaneio. Observo-o sorrir e contar estórias em frases bem
articuladas. Fala dos tempos em que era quisto por todos, das viagens, das
putas enlouquecidas que o arranhavam e o empobreciam. Atrevo-me a perguntar:
- E o que te faz estar aqui, Marx?
A pergunta o cala. O sorriso aberto estreita-se e o olhar
eufórico fenece. No silêncio triste nossos olhos fitam-se em comunhão e
sofrimento. Não era preciso dizer nada. As notas mudas do pilantra ecoaram
longe na amargura da lembrança...
- Uma mulher... – balbuciou melancólico.
O olhar desvia-se e Galego em solavanco pede um novo brinde.
- Às mulheres! Rainhas de nossa desgraça!
Todos brindam. Os mendigos se alegram e começam a gritar
nomes incessantemente.
- À Amélia! Àquela ingrata que me abandonou – bradou o homem
das muletas.
- À Marlene! A melhor boqueteira do P-sul! – vibrou um
outro.
- À Mariazinha! Que tá no céu agora rezando por mim... –
clamou nostálgico o bom Espiga.
Solange, Valdenice, Joana, Rita, Luzia... Todas devidamente
lembradas na confraria dos pilantras. Entre nomes de mulheres e cantorias escuto
as desventuras de cada um. Meu corpo se acalenta. Tremo. Espiga me fala
sorrindo de Mariazinha, de como era boa, e os meus olhos se encharcam. Reluto
em chorar (eu preciso chorar!).
- Berenice!!!!! – grito em silêncio, atormentado...
Enquanto nos enlouquecemos Álvares se contorce no leito
sepulcral, lamentando não ter vivido mais duas centenas de anos para brindar
conosco. Solfiere, Bertram e os taverneiros de outrora invejariam esse
encontro. Mendigos da madrugada, famintos de donzelas e sedentos de cachaça.
Spleen e Derby! Uma fossa! Um sonho!
Ameaço levantar. A pinga seca me corrói o estômago. Seco-me.
Levanto atônito sustentando o vômito. Corro para um canto solitário, tentando
me camuflar. Galego percebe e se põe ao meu lado. Despejo na terra desidratada
o maná que vem do inferno. O cheiro fétido não incomoda o amigo. Suo frio.
Transpiro a acidez da melancolia. Deito e deixo que o cão me lamba e se
alimente da iguaria divina. Galego sorri da situação...
- É meu amigo...51 não é pra qualquer um não. É bebida de
vagabundo, de quem mora com o capeta...
Espiga me dá de sua água. Todos riem do meu estado. Rio com
eles. Mais um brinde e decido ir embora. Despeço-me de cada um com um abraço
forte, fraterno. Convidam-me para voltar sempre e retribuo com mais uma 51 de
cortesia. Um latido me interrompe. Acaricio o cão uma última vez...
- Qual o nome dele?
- Esse aí é o Lobão, meu companheiro... – responde Espiga cheio
de orgulho.
Emocionado deixo o 24 horas e caminho cambaleante de volta a
casa, ainda desacreditado da noite apoteótica que tivera, da noite nas escadas...
Espiga, Galego...Homens de muletas! Bêbados mutilados da
madrugada!...
Profundamente ébrio abro a porta e percebo que a velha
vitrola esquecida ligada arranhava a voz lânguida de Vicente Celestino. Faço-o
cantar novamente em grande altura. Resgato da parede próxima ao leito um
retrato. Observo-a pela última vez. Tão pálida! Tão linda! Deito na cama
beijando enlouquecidamente a imagem dela. Enterro-a no criado-mudo. A cabeça
roda. Ameaço chorar (eu preciso chorar!)
- Letícia!!!!! – choro em silêncio, embriagado...
Djallys Dietz é daqueles embromadores da madrugada. Bebe só
e não fuma Derby. Quis ser tudo e eventualmente, quando ébrio, o é. E assim vai
cambaleando... até o segundo em que o câncer o encerrar.
O Ébrio
(Vicente Celestino)
Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer
Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou
Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou
Só nas tabernas é que encontro meu abrigo
cada colega de infortúnio é um grande amigo
Que embora tenham como eu seus sofrimentos
Me aconselham e aliviam meus tormentos
Já fui feliz e recebido com nobreza até
Nadava em ouro e tinha alcova de cetim
E a cada passo um grande amigo que depunha fé
E nos parentes... confiava, sim!
E hoje ao ver-me na miséria tudo vejo então
O falso lar que amava e que a chorar deixei
Cada parente, cada amigo, era um ladrão
Me abandonaram e roubaram o que amei
Falsos amigos, eu vos peço, imploro a chorar
Quando eu morrer, à minha campa nenhuma inscrição
Deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar
Este ébrio triste e este triste coração
Quero somente que na campa em que eu repousar
Os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
E suas lágrimas de dor ao peito amigo
(Vicente Celestino)
Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer
Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou
Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou
Só nas tabernas é que encontro meu abrigo
cada colega de infortúnio é um grande amigo
Que embora tenham como eu seus sofrimentos
Me aconselham e aliviam meus tormentos
Já fui feliz e recebido com nobreza até
Nadava em ouro e tinha alcova de cetim
E a cada passo um grande amigo que depunha fé
E nos parentes... confiava, sim!
E hoje ao ver-me na miséria tudo vejo então
O falso lar que amava e que a chorar deixei
Cada parente, cada amigo, era um ladrão
Me abandonaram e roubaram o que amei
Falsos amigos, eu vos peço, imploro a chorar
Quando eu morrer, à minha campa nenhuma inscrição
Deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar
Este ébrio triste e este triste coração
Quero somente que na campa em que eu repousar
Os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
E suas lágrimas de dor ao peito amigo
Quase nostálgico... aquilo que vem do coração... lindo!
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