À
brisa do docinho da Ca Ipora
Ruan
J.[1]
Chegou Piroli. Chegava
de manhã.
Fernanda andava por lá,
tinha chegado na noite anterior, sua fama a antecedeu por mais de mês.
Aqui narro de seu amigo
Vitório que tantas fez e tanto quis que acabou retornando. Chamava assim com um
nome que refuta sua condição, nunca ganhou nada e muito pestanejou querendo
ganhar tudo que se fez carta branca no mundo... A ele tudo era permitido, arreganhava-se
com licença poética, dava de ombros à existência do alto da sua condição de
café-com-leite. E sempre faltou paciência para tudo enquanto tinha de lidar.
Primeiro foi garçom.
Antes mesmo de ser gente foi garçom, decidiu que era gente por porque era algo,
era garçom... Como garçom entendeu a lógica do poder que sua classe tinha. A
classe dos garçons tem um poder imenso, isso Vitório descobriu. Servia a toda
Capim Branco, aquela gente despeitada desejosa de ser “grandes-bostas”, e quando
ouvia impropério, grossura, maltratamento, ou mesmo quando ficava cansado do
tédio da vida em quotidiano, começava a dar provas
de seu poder, desferindo pequenos golpes de seu
poder nos humildes mortais. Enfiava o dedo no cu e mexia com o mesmo dedo o
suco escumado, aproveitava da escuma e lá camuflava altas cusparadas. E
misturava catarro no molho madeira, cera de ouvido e pus de espinha na manteiga
derretida, deitava na feijoada a casca das feridas... Três semanas e não deu
mais, seu poder de garçom também o saturou, como saturou, de um dia para outro,
o óleo da pelota, e optou por vagar por aí. E
foi vagando que chegou onde estava quando chegou Fernanda como visita.
Morava com
Pirole, seu amigo, numa tapera grande. Pirole chegava do trabalho e Vitório, do seu
lugar, esperava ansioso para ver seu
amigo destilar simpatia. E pela manhã inteira Pirole tratou bem Fernanda que
recebeu a hospitalidade orgulhosa como sempre, achando que nada vinha de graça.
Por isso logo deu pra Pirole na cozinha, enquanto da sala Vitório repassava suas
paixões antigas, falava só, por horas prescindia de interlocutor:
- Saio de um relacionamento pro outro, gatta,
sou assim desde menino... (pausa longa, enquanto bebe
campari velho que tava na geladeira) Não
vou ouvir Bethania hoje, viu, me faz lembrar do Alex e o Alex não merece que se
lembre dele, bicha louca! Ele e eu tinha (desconcordância
deliberada) sangue no olho, quando a gente brigava a gente quebrava o
apartamento dele inteiro. Com Elvis que eu não me encrespava , fazia eu jeito
de piti e ele me jogava porta afora. Ele tinha um cuidaaado com as coisas dele,
um asseio! mesmo assim deu pra quebrar uns bibolôs vei-feio
que a mãe dele deu pra enfeitar a casinha dele, o espacinho dele...
Limpinho mas tinha tara em comer menino drogado... Quem não suja a pele suja a
alma! Sua alma sua palma, to esperando o filho dele crescer mais um pouco pra
eu poder comer...
Sairam, por fim, Vitório,
Fernanda e Piroli... Doidinho esse Piroli, muito controlado, mas do tipo que no
meio da loucura sobrevive a todos os loucos. Tem um saco mais fundo, do tipo
que nada é tão agudo que atravesse sua grossa casca... Foram parar num
monumento pequeno de longe grande de perto, e alto de subir nele por uma escada íngrime de concreto. Lá em cima tinha um
lugar pequenino de se estar, algo como uma varandinha cercada de guarda-corpo,
em que jazia sob um semi-pilar a tocha de um fogo que nunca apaga, faz pra mais
de cinquenta anos e tá lá a mesma chama, em honra aos audazes bandeirolas,
sertanejos e putas de dois tostões...
Enquanto os outros dois
ficaram embaixo, na lascívia, Vitório subiu lá
no alto, galgando os degraus com gana de quem vai ao encontro do ancião preceptor.
Ficou pertinho do fogo, bêbado, vendo crepitar as labaredas com os olhos inundados.
Naquela noite tomou só uma garrafa de vermute, ainda bebia as bebidas mesmas do
tempo de menino, e bebia tudo, quanto mais se te
oferecessem de graça. Naquela noite deu a língua à Fernanda e ela, com esmero
de uma mãe sem filho, posicionou o papelzinho como a mãe que procura na parede
o ponto mais justo para o retrato do filho que já não tem. Olhando para o fogo,
Vitório viu no fogo o que viu quando viu o fogo pela primeira vez. Tomado de
êxtase afastou o corpo até o guarda-corpo, dispensou o corpo ao ar e deixou o
corpo cair, queda livre... doze metros depois e seu corpo no chão...
Caminhou depois, por um
túnel sem luz no fim, mas andou tanto com medo do escuro que chegou no
purgatório. Lá uma moça alta e poliglota o
recebeu com respeito, mandou entrar na fila e esperar um bocado. Vitório acedeu
acendendo um cigarro, mas foi advertido e teve de apagar certo de que o
purgatório era uma instituição de sequestro.
- Onde posso ser o que eu sou? é no inferno?
então toca pra lá então!
Depois descobriu que só
havia purgatório, que nenhuma alma precisava de castigo eterno, nem merecia
descanso perene, ficavam ali purgando, dando explicação e esperando Godot. A sala de espera do
purgatório era o foyer de um grande teatro. Enquanto Vitório esperava acontecia
um vèrnisságe, serviam coisas crocantes e bom vinho e toda a gente, com
cachecóis no pescoço, falava de arte. Vitório foi depois reclamar, disse que
aquilo feria o veto ao castigo eterno. Para não contrariar a maioria, nem
tentar refutar observação tão lógica, o guarda fez Vitório entrar. Lá não
encontrou um auditório, mas uma sala de depoimento de quatro metros quadrados,
quatro milhões e quatrocentos e quarenta e quatro mil quatrocentos e quarenta e
quatro metros quadrados menor que o foyer. Lá dentro dividia o espaço mínimo um
velho que escrevia na máquina na velocidade da fala e um jovem que tinha
respondida toda pergunta que perguntasse.
Vitório prático disse ao velho que anotasse e ao
jovem que não perguntasse, que diria o que na teia desse e que com certeza toda
dúvida sem pergunta seria esclarecida:
- Eu amei demais.
Pergunta faço eu: porque amei tanto e tão a cabo e tão a fundo? Não respondam.
Tudo isso me trouxe aqui, uma vontade decadente, um desejo sem eco e uma
vontade boba de errar os caminhos. Quando era menino amei baixo, gostava de uma
pequena esquisita que comia terra com a boca desenhada de batom, amei-a tanto
que passava as quatro horas na escola sugando a madeira do lápis até que acabava o grafite. Por
ela tomei uma garrafa de biotônico, depois enveredei nos vidros de perfume,
rasguei a roupa na rua no meio de um desvario, durmi na sarjeta e deixei a
escola, fiz uma mala pequena e fui ver outros
lugares. Aí me apaixonei por um cara aí, com idade pra ser meu pai. Ele me
tratou como um deus trata um mortal, como um mancebo trata outro mais mancebo, assim se regozijando
por ter o destino de um ser sob a égide de seu
poder. Mandava eu fazer as posições mais esquisitas, me obrigava a deitar sobre
bifes mal passados escorrendo sangue, chupar caco de vidro e me deitar com as
criações. Me cansei não por sofrimento, pra mim não há sofrimento que chegue, o
duro era aturar o tédio... a excentricidade do
cara também me cansou. Aí fui ter com uma puta
velha, que conheci na rua, porque depois é sempre a rua. Ela eu não amei, mas o
cheiro azedo da xota dela lembrava a minha mãe. Me lembro que ficava por horas
com cabeça entre as pernas dela, recordando, pela força que o olfato tem em matéria de memória, o dia que a minha mãe foi embora
deixando meu pai bêbado por dias e por dias o cheiro azedo da sua xota no ar.
Um dia a puta velha saiu pra comprar pão e não
voltou, me desesperei uma semana depois quando o cheiro azedo da xota dela já
não podia ser sentido em nenhum canto da casa. Um tempo e vieram os sobrinhos
que eu não sabia que ela tinha e demoliram a casa comigo dentro, eu saí do
terreno baldio quando o novo dono apareceu e começou a erguer paredes que foram
me enclausurando. Quando começaram a moldar a janela, fugi por ela pra poder
ganhar o mundo travez. Depois foi o Elvis, depois o Alex... Só então Maricélia
e Victor Hugo, Maricélia era boazinha, tão boazinha que eu tinha vontade de bater
nela, ela me mostrou o quanto gostava de apanhar
e eu me apaixonei. Mas o Victor já estava na minha vida, fiquei comendo os dois,
apanhando dos dois, os dois tendo de mim tudo que queriam ter. Mas se
conheceram um dia e, como na brincadeira da gata parida, fui espirrado pra fora
de todo amor-bagunça do mundo... Eu amei demais, amei a viúva de um sado-masoquista e até sua perversão me cansou, me
cansei do gosto do salto da botina dela na minha boca. Amei demais e me cansei
até da garçonete, que vestia avental floral e me fez engordar com a sustança da
sua comida remosa. Fiz por aí dois amigos, são os dois que estavam comigo. Faz meia hora que caí e ela tá lá com a pica dele na
boca, os dois sem se darem conta do meu corpo estirado. E amei mais e mais
além, me cansei da vida, mas jamais do sentimento, deixei as coisas práticas da
vida pra lidar com o sentimento. Sinto tanto que deixei o mundo. Sinto tanto e
receio deixar vocês. Posso ir?
Saiu e contemplou o
purgatório inteiro com suas ruas sem saídas, seus horizontes entrecortados de
almas vadias, que caminhavam vindo por toda parte. O purgatório inteiro ilhado de almas vadias! e não parava de chegar mais. Era tanta
gente contando seus abortos, seus cancros moles e estelionatos, que Vitório
decidiu fazer o caminho contrário, foi se esgueirando entre as pessoas,
tentando voltar pra casa ou pelo menos encontrar o caminho pro inferno. Não era
permitido voltar, mas Vitório tinha carta-branca, e
tanto caminhou que logo encontrou a viela que, quebrando a terceira à esquerda,
dava acesso pro seu corpo. Chegou, enfim, no seio de si, acordou, sacudiu a
roupa, saiu.(parágrafo)
Ainda hoje vai vagabundo por aí, procurando sentido enquanto procura sentir saudade.
[1] Ruan
J. heterônimo de Sávio J., que é heterônimo de Caio Higino, o caio no mundo,
pseudônimo daquele que prefere não se identificar, não por medo, mas para que o
uso de pseudônimo pelos heterônimos não perca seu sentido. Ruan J. tem quase
trinta, mas parece ter mais trinta. Gosta de poltrona modernista, para ver,
nunca para sentar, e gosta de televisão... Perde horas vendo catálogos e
almanaque de décadas idas. Certo dia ficou, por tempo indeterminado, vendo uma
foto de Grande Otelo em que ele fugia de um teatro de revista em chamas com uma
vedete nos braços. Adora Baby Consuelo, telenovela, sertanejo raiz e filme de
tragédia urbana baseado em fatos reais. Porém seu filme favorito é Casablanca,
por catarse simplesmente. É que Ruan J. sofre de amor indiferente e de quando
em vez tira fotografia, mas nunca teve câmera própria. Sempre ri assistindo Cidadão
Kane, chora vendo O Astro e rói as unhas vendo o futebol. Veio de minas é
atleticano roxo, anda de bicicleta, não dirige por déficit de atenção... Ama
sem recíproca uma moça de Minas mesmo, uma moça de sotaque forte e as palavras
muito bem pronunciadas, que estuda literatura dramática e gosta de cantora
sapatão da nova MPB.
Eu gosto muito, você acredita e eu acredito em você. Topa?
ResponderExcluirEu vejo o mineirês nas palavras deste conto! Muito bom Roger!!
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