Vidas Brasílias
(*) FERNANDO VILLAR
especial para o Correio Braziliense - 21/ 04/ 2002
Nenhuma obra de arte acontece num vácuo. A cultura, o meio ambiente, o site no qual se insere o artista certamente influencia sua criação, mesmo que o interesse principal possa ser criar um outro mundo distante da realidade circundante. Sabemos como o sol do sul da França ou a luminosidade do céu tunisiano mudaram as pinturas de Van Gogh ou Paul Klee. Além de Rio e Salvador, Caetano Veloso ainda fala, escreve, filma e canta sua cidade natal, Santo Amaro (BA).
Seria difícil desconhecer a relação direta entre a arte desenvolvida na jovem capital e a terra vermelha onde pisamos, o cerrado e a linha do horizonte que vemos e as criatividades expostas de criadores locais. Também podem chamar a nossa atenção as relações entre as transformações do plano original de Brasília, os desmandos governamentais, os lucros imobiliários amparados nos lobbies performados nos belos prédios que abrigam o poder e a horrorização da cidade. A arte que se faz na cidade, distorce, replica, questiona ou baixa as calças para os que querem transformar essa cidade única em apenas mais uma cidade brasileira, que exclui injustamente e humilha seus cidadãos, negando o potencial socialista e inovador que inspirou a criação da nova capital de um possível novo país.
Como seria encenar Brasília ou corresponder à musa-cidade? Seriam brasilienses falando sobre Ws 3, 4 e 5, Ls e SQSs, cantar o Plano Piloto e o Gama, dançar asas e eixos? Acho que também, mas quando me perguntam sobre a relação espacial entre a minha produção cênica com o Vidas Erradas nos anos 80 e a cidade de Brasília, não vejo referências tão claras.
Em Você Tem uma Caneta Azul prá Prova? (1983) o público gargalhava com um não existente e então considerado impossível, ah, ah, ah, QI 23! Em Vidas Erradas (1984), a cidade era citada uma vez como ‘‘Brasoca querida’’ antes da fala ‘‘só nós na noite, no nada...’’ A cena do pensado ‘‘bar’’, como um dos escapes da juventude brasileira, foi imediatamente associada com o Beirute e acabamos tendo as performances espontâneas do Maxixe, então garçom do Beira, comparecendo a caráter, com cardápio, bandeja, copos e kibes.
Em João e Maria, uma História de Verdades e Mentiras (1985-88), a realidade rica do João Roberto e a realidade pobre de Maria Elizabeth iniciavam a peça e a platéia brasiliense associava o primeiro João com o Lago Sul e a primeira Maria com a Ceilândia. Fotos de Jeanina Daher ampliavam no ciclorama da Martins Pena o mesmo céu de Brasília entrecortando as sessões de psicanálise da recém-morta Greta, em O Caso Greta (1987). O próprio Teatro Nacional foi o local alugado para o casamento da personagem com o então jovem e bonito senador Ronaldo Schwartz, gaúcho eleito por Minas, que já havia morado em Brasília e prometia a renovação nacional. Mas as referências literais são apenas estas.
A musa Brasília também me tocou. Mas me tocou com um hálito socialista que regia sua criação; me roçou com lábios que murmuravam leite, mel e transformações sociais que celebrassem a capital da mestiçagem única que caracteriza nossas identidades brasileiras. Os braços e pernas, eixos e esquinas imaginadas que me abraçavam só me exigiam que eu tentasse entender que os espaços amplos e abertos convidavam à união de etnias, gêneros, sexualidades, campos de conhecimento e performatividades, todas e todos ocupando e dividindo criativamente aqueles mesmos espaços.
O teatro do Vidas Erradas questionava ordens vigentes, teatros vigentes, incomunicabilidades e preconceitos como Brasília anunciava em seu ideal embrionário antes do golpe militar, que nos pegou nascendo ou chegando pequenos na cidade. A falta de grandes cenários fixos ressaltava o espaço aberto que era ocupado por luzes, movimentos, partos, mortos, sapos, replicantes, cores, suores e amores de pessoas insistencialistas, como dizia o Batata. E nosso grupo assustava tanto pela quantidade (26 na Caneta Azul, 30 em Vidas Erradas ou 45 em O Caso Greta) quanto pela diversidade: o grupo juntava grupos e mundos com dançarinas, mulatos, yuppies, sindicalistas, bailarinos, hippies, artistas plásticos, bi-curiosos, músicos, galegos, negras, gays, lésbicas, estrangeiros, cantoras, anarquistas, punks, enrustidos, orgiásticos, inclassificáveis, pais, mães, crianças, recém-nascidas.
Enquanto existir injustiça, continuamos todos vidas erradas. Se a jovem Brasília ainda não conhece Brasília, Brasília ainda não pode ser a Brasília dos brasileiros orgulhosos do grande feito no meio do cerrado. Brasília ainda é associada com os corruptos que a penetram indecente. Mas artistas da cidade ainda flertam com a Musa, que espera paciente, mas que não deixa de ausentar-se, como seus primeiros criadores, pela dor da degradação dos tecidos sociais e mentais, do amor e da utopia.
(*) Fernando Villar é dramaturgo, diretor de teatro e professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília (UnB)
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