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sexta-feira, 13 de julho de 2012

Lembranças de uma bêbada. Festa Niver do Liquidificador.



11 de julho de 2012. Quarta-Feira. UnB. 18h30. Começam os trabalhos. Carrega refletor. Inventa formas de ligar todos juntos. Uma cacetada de extensão. Só temos uma tomada. Vamo tentar colocar em duas? Não funciona. Só uma mesmo. Seja o que deus quiser. 500w + 250w+ 250w+ 250w+ 1000w = sem dúvidas um aniversário elétrico. Volto pra casa. Fico nervosa ( não sei porque). Banho. Escolho uma roupa. Penso que vai ta frio. Troco de roupa. Vou embora. “CADÊ MINHA VODKA?” “aah eu tomei”. Beleza. Mercado. Vodka + sprite. Chego. Opa! Já tem bastante gente! Primeira dose de cocaína russa. “Quintas a gente precisa da caixa do CA!” “Calma gente! Deixa ela tomar pelo menos uma dose antes de começar a trabalhar”. Acho engraçado. 22:22. “Cara eu to vendo hora igual hoje o dia inteiro.”  ..... “Eu tenho um vinho no meu carro, se você quiser!”  “Mais tarde!”.  Encontro muita gente. Era uma festa estranha, com gente esquisita, mas nessa eu tava bem legal. Quantos diálogos. Quantas conversas diferentes. “Você que vai postar no blog amanha tá?”. Ok! Penso em um zilhão de coisas que poderia escrever naquela hora. Mas deixa a festa acontecer.  Segunda dose de cocaína russa. Terceira. Opa, melhor parar um pouco. Abro a minha vodka com sprite. “Faz mais desse lá pra gente?”. Claro! “Xuxu, cadê aquele vinho que você falou que tinha?”. 5 Minutos. Vinho. “Poxa, como você é muito legal!”. Feliz. Quarta dose de cocaína russa. “não dá pra sentir a vodka!” café deixa elétrico. “Acabei de tomar mais uma dose!”. “Deu pra sentir o gosto!” “Achava que você não gostava de café.”. da sua boca, eu gosto, muito. ( mas eu guardo pra mim.). Quanta gente falando da gente pra gente. Essas festas. Me sinto importante. Me sinto feliz. 00h00. FELIZ ANIVERSÁRIO IZA! 24 anos! Microfone não funciona. Trabalha pra deixar o melhor possível. 5ª dose. 6ª dose. Não respondo mais pelos meus atos. “Posso fechar a porta do seu carro?”. Droga! Porque que a gente tá dentro de um carro. 5 minutos de reflexão de mim pra mim... Pensamento que não pode ser escrito aqui... Mas não sai. Tenho medo. De que? “Quintas vai lá!!!”. Volto no tempo. Aquela placa. Última festa do cometa cenas. Vish. Perai. Voltei. Mais vodka. “Quintas cadê sua musica?” po. Não trouxe. Mas até que achei melhor assim. Todo mundo tão bonito. Todo mundo tão legal. É, to bem bêbada. Pessoas tão indo embora. Que horas são? Meu celular acabou a bateria! Nossa que  bom! Perdi a noção do tempo. De repente. Bambu. Essa festa aconteceu muita coisa. Tá acontecendo. Vontade de falar uma coisa. Agora não. Que dia é hoje? 12 de julho. Quinta feira. Não me parece um bom dia. Agora não. É que às vezes da vontade. Vish.Perai. Voltei. Tá amanhecendo. Nossa que céu lindo. Não sei quanto tempo fiquei, mas pra mim foram horas olhando só pra ele. Duas estrelas. E Uma lua. To com fome. Vamo guardar tudo? Abre o porta-mala. Guarda tudo. Ai, minha garganta. Eita. “Tá com cara triste?” “To com fome e frio.” “Vai embora!” “To indo!” “Você tá me expulsando?” “Não!”. Pensamento que não pode ser escrito aqui. ( mas eu guardo pra mim.). que festa louca. Um último “QUINTAS!”. Freio. Duas pessoas dando tchau. Preciso dormir.O caminho parece até em casa parece eterno. Chego em casa. Mesmo com fome não como nada. Deito. Acordo vomitando. 2 vezes. Durmo de novo. AH! Minha garganta! Acordo vomitando. 1 vez. Tenho que trabalhar. Ainda to bêbada. Febre. Dor de garganta. Aniversário elétrico. Acabou com a minha eletricidade. Liquidificador não é um grupo..é um movimento? Será?Depois de ontem, acho  que talvez sim. Feliz anos. Feliz ressaca. Feliz ultra-romantico. Feliz pessoas bonitas. Feliz por me sentir um tantinho parte disso tudo. Obrigada! 





















segunda-feira, 9 de julho de 2012

VOODOOHOP




Antes de falar da minha festa, tenho que fazer uma pequena introdução para entenderem ao máximo o que eu quero falar e sentirem ao menos um pouquinho disso.
Na minha infância era praxe passar as madrugadas conversando com minha tia. Numa dessas, envolto em fumaça de incenso e cigarro, ela me disse que gostava da noite porque ela é melhor, não te exige, não te julga, não espera nada. As pessoas da noite são mais interessantes. Nunca esqueci isso.
A noite as pessoas se soltam, se vestem, se despem. Você pode ser quem quiser. Quem nunca saiu um dia e mentiu o nome experimentando ser uma pessoa completamente diferente? Quem não fez, recomendo. No dia seguinte vc pode não lembrar de nada, ou querer não lembrar. A noite te permite.
E foi assim que essa minha tia me levou a uma boate quando tinha 7 anos, aniversário de um amigo, camarote separado. Mal sabia eu que 11 anos depois estaria trabalhando ali. Não parei mais.
Coloridas.Blackout.Swinger.Eletrônica.Sertaneja.Hetero.Homo.Samba.Pop.Sado-Maso.Artisticas.Gregas.Góticas.
É difícil escolher só uma festa pra falar aqui, principalmente quando sua vida é tomada delas. Com três festas por semana, há 10 anos, temos uma média de 1440 festas, 7200 horas que dão 300 dias. Daqui a pouco posso dizer que já passei um ano inteiro em festa.
Pra escolher uma, tinha de ser A uma. A que mais me identifico e que mostra esse mix das 1440.
Escolhi a Voodoohop.

Voodoohop Neon Ritual from The Silent Walk on Vimeo.


A Voodoohop começou em São Paulo com a idéia de revitalizar lugares abandonados. A festa é itinerante e sempre acontecem nos mais diversos locais, prédios, puteiros, chácaras e afins. É uma mistura de idéias e sensações, música e arte se encontram com djs, vjs, bandas e performances. A entrada ainda é free pra quem vai de bicicleta ou fantasiado na temática da festa. E que temáticas! Neon Ritual, Baile de Los Muertos, Gente Que Transa, Solstício Pagão e vários outros. A forma fez sucesso e hoje a Voodoohop passa também por Brasília, Rio, Salvador, Londres, Paris, Berlin, Madrid, Istambul, Nova Iorque e mais.
Ao ser convidado pra trabalhar nela fiquei lisonjeado, os preparativos começaram. A Voodoohop do Solstício Pagão ocorreria simultâneamente em várias cidades do mundo, exatamente no dia do solstício. Uma espécie de Sabbath de Litha hedonista. O local escolhido foi um clube amplo, com grama e instalações diversas. Uma espécia de tenda inflável foi armada em um ponto, foco de luz, recheada de tintas e panos, chitas, muitas estampas. Além das tendas dos djs, fizeram um enorme círculo de fogo, para o grande ritual. 



Escolhi representar o grande Deus Chifrudo, nossa performance (minha e da minha prima, com quem trabalho) era bem ritualística. O Deus Chifrudo com seu falo ereto que gozava álcool na boca de quem quisesse ser abençoado. O álcool entrava e as pessoas se soltavam, cera quente que dói, mais luzes, cânticos eletrônicos. Mais álcool. Quem quisesse se despia, as chitas rodavam transformando tudo num grande kaleidoscópio. Mais álcool. A cera quente não dói mais tanto. Meninas de biquini pintavam umas as outras com um pau de borracha. Espera, isso foi nessa Voodoohop ou em outra? Mais álcool. A cera quente de repente fica incrivelmente sexy. Uma menina vem chorando, se ajoelha perante a mim e pede um homem, entoo um canto qualquer e finalizo despejando álcool na boca dela com o falo do Chifrudo. Não basta. Ela paga o falo e se molha inteira, dando um banho de vodca em si mesma e finalizando beijando meu próprio membro por cima da calça. Mais álcool. Caio. O bombeiro quer me costurar, tenho de ir pro hospital. Não quero. Não posso abandonar o ritual agora. Na embriaguez peço uma linha da roupa do bombeiro pra me costurar, ele diz que não. Recuso-me a ir e continuo aberto mesmo. Mais álcool, mais tinta. Abraços, beijos, lágrimas, alegrias. Tudo assim, com desconhecidos. Não fala seu nome, não estraga o momento, deixa eu escolher um pra você.



No horizonte o sol começa a levantar, é feito o último círculo. Hora de ir embora. Mais um ritual feito, mais pessoas felizes, menos lembranças na mente. Mais uma noite.






O grande kaleidoscópio voodoo: http://inoyan.narod.ru/kaleidoskop.swf





quarta-feira, 20 de junho de 2012

Liquidificados... Ricardo Rosa e Kael Studart

Até o final da semana passada, este blog estava repleto de postagens de queridos convidados. Terça passada, que é meu dia de postar, meu amigo Ricardo Rosa fez um conto para inserir aqui. Mas em crises comuns de autor, ele não tinha um final por conflitos morais. Ou algo do tipo. Ele me explicou isso eu não estava 100% neste planeta, por isso, eu não lembro exatamente os causos. Mas lembro de algo do tipo "vamos finalizar juntos".
O caderninho com o conto ele deixou na minha casa. Peguei, li e, por falta de um encontro formal pra finalizar o texto, resolvi estuprá-lo (o conto) e finalizar sozinho. 
Ricardo, caso se sinta ofendido por não ter tido oportunidade de opinar, ou de não ter gostado do destino que dei aos personagens, você tem a liberdade soberana de remodificar o post.

Então... Vamos a ele!

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Conto Sem Título

Era uma dessas noites de frio cortante, quando nem os grilos se aventuram a cantar. Havia um homem sentado numa parada de ônibus. Fazia o possível para se esquentar numa noite tão fria, enquanto carros apressados cortavam a quietude de sua solidão. Se o visse, notaria que esse homem tinha uma feição distante, olhos de quem poderia esperar ali por décadas. E ali ele ficou, enquanto a cidade se movia, ele ficou ali parado e observando. Seus olhos eram os de quem remoia algum sentimento do passado, olhos de quem tem raiva de si mesmo.
Se nesse momento você passasse por essa parada e visse esse homem, provavelmente se assustaria pois seus olhos pareciam tramar algo terrível. Mas isso não era verdade. Ele apenas lembrava de seus amigos e de dias mais ruidosos. E um tímido sorriso brotava de sua face. Mas isso logo ia embora e ele praguejava a demora do ônibus. Distraído em suas memórias, foi trazido à tona pelo absurdo barulho do ônibus chegando.
Sem provocar o mínimo ruído, entrou no ônibus, pagou, e seu silêncio foi brutalmente interrompido pela catraca e pelo urro do grande ônibus. Sentou-se. Mas ainda havia um silêncio nele, um denso silêncio como uma noite de neblina. Na verdade, o Estrondo Absurdo dos movimentos do ônibus tornavam esse silêncio ainda mais profundo e impossível. Era um silêncio tão persistente que ele podia falar em voz alta e isso não passaria de um mero sussurro para quem ali estivesse.
 Esse homem parecia agora gradualmente mais apreensivo e ansioso à medida que o ônibus se aproximava do seu destino. Estava visualmente incomodado com aquela melancolia amarga que incomoda no coração.
E ia, que como um cão que percebe a proximidade do dono. Levantou-se de sobressalto e puxou a cordinha dando sinal para parar. Quase se arrebentou com a brusca freada, mas logo já estava caminhando rumo ao seu destino. Pela hora não conseguiria outro ônibus que o levasse até a Asa Norte, o que significava (?) parar na Esplanada e caminhar o resto do trajeto. O que não lhe incomodava de jeito nenhum. Muito pelo contrário. Essa caminhada lhe daria a paz de que precisava, pensava ele. E lá ia ele caminhando por alguns lugares que mais pareciam abandonados do que partes de alguma coisa. Permanecia em completo silêncio, mas algo em suas feições parecia tranquilizar-se à medida que caminhava.
Andava sem a menor pressa. Usava esse momento pra pensar um pouco, e isso o impunha ora uma irritação enérgica, ora uma alegria leve. Foi assim caminhando nessa bipolaridade por aproximadamente uma hora antes de chegar ao seu destino. Como era de se esperar, o fim da via cruzes, era um bar. Não havia nada de especial nesse bar. Talvez, apenas as pessoas e suas histórias. Fora isso, um barzinho pé-sujo e sem-vergonha. Ele se aproximava com cautela, mantinha distância como um caçador experiente.
Foi então que a avistou. Charmosa como sempre! Mas havia algo de diferente em seu jeito de ser. Parecia alheia às conversas e burburinhos que lhe cercavam, mesmo que participasse com risos e comentários. Algo a incomodava, mas ela era boa em disfarçar essas coisas. Não dele. Nunca dele. Ele a conhecia profundamente e sabia que havia algo errado, mas preferia observar o desfecho ao interferir. Decidiu aproximar-se do balcão do bar discretamente para não ser notado. Realmente precisava de uma cervejinha.
Não passou muito tempo até que um grupo de pessoas chegasse à mesa dela. Reconheceu alguns rostos, mas nenhum lhe chamou atenção. Permaneceu distante pois notou que ela estava ancorada no celular pot muito tempo... Esperava por alguém.
A conversa ao telefone a angustiava. Suas sobrancelhas não conseguiam escondê-lo. Ele novamente vai ao balcão pedir outra cerveja para que não o vissem.
____

Bebeu-a silenciosamente em uma virada de copo apenas, como de costume. Cada copo, um gole. Cada silêncio, uma garrafa. E, a cada nível emergente de embriaguez, menos invisível ele era. Isso ele não podia evitar, por mínimo que fosse o teor alcoólico da cerveja, por mais tolerância que tivesse às drogas.
Já cansado de bebericar no copo, levou a garrafa de litro à boca, que grudou como uma ventosa. Uma garrafa na vertical, de ponta-cabeça, despejando sua cevada líquida e de baixo teor na cabeça rígida e tolerante, inclinada na horizontal. Esse era seu quadro preferido. Perpendiculares em sua composição geram loucura e alucinação ao resto do corpo que a sustenta. Um corpo arqueado e imerso naquela elegante sensação que é o voo alcoólico. Quando, ao tomar uma larga escala de morte-lenta, a cabeça continua girando para traz até atravessar as costas e regressar ao ponto inicial. Tudo isso, para pensar (silenciosamente) apenas nela, em nada mais.
Finda o denso e extravagante gole. O corpo volta à postura ereta de homo sapiens regular, tonto, mas civilizado. Ele olha para o lado e a enxerga. Ela o encara a uma distância de apenas 5 metros. 5 metros!  Ele a acompanha com os olhos, a desnuda à distância e afaga seus cabelos secos e modernos. Ela parece fixada nele e, o que havia entre os dois, era uma densa camada de eletricidade radioativa. Era o que ele via. E tudo estava inerte, o tempo dilatou-se em centenas de anos. Mas, o primeiro milésimo de segundo desde a primeira olhada em que seus olhos fecharam para lubrificar os olhos desidratados, foi o suficiente para perder controle do magnetismo. Impressionantemente, o tão breve e insignificante momento de escuridão de uma piscada, foi o tempo certo para deixar de acompanhar os movimentos que ela deu para perder o olhar e dar dois passos em direção ao banheiro.
Desiludido e com os olhos pouco mais lubrificados do que o normal, silenciosamente botou a garrafa de litro no balcão, pagou a conta das duas cervejas e seguiu andando. Na sua longa, silenciosa e solitária caminhada pensou nela. Fez juras de amor ultrarromânticas, uivou seu choro infeliz e praguejou contra si. Arrastou-se pelos terrenos baldios do centro. Atravessou cercas, pulou buracos profundos e subiu os degraus de um edifício em construção. Chegou ao terraço e deitou-se ao frio do vento que venta o topo de todo edifício. Lá mesmo ele dormiu coitado e inofensivo. E delirou repetidamente a promessa de nunca, nunca mais piscar, para que nenhum desgraçado milésimo de segundo arruinasse um possível segundo contato com ela.



terça-feira, 19 de junho de 2012

A TAVERNA VIRTUAL



        Esses dias estava eu lendo sobre o caso Miami Zombie. Como geek que sou, tive um grande entusiasmo na hora, pensando em zumbis apocalípticos e na coisa toda quando me apareceram dois outros casos parecidos: dois jovens que comeram partes de seus colegas. De súbito a euforia foi gerando um certo mal estar; estava tudo indo longe demais. Na hora passei a ler sobre e não me surpreendi quando me apareceu outro ainda pior, sobre um jovem ator pornô gay, que matou o rapaz com quem dividia apartamento e colocou o vídeo na internet. 
        A repulsa é grande, mas a curiosidade é maior. Sou desses que gosta de saber sobre seus gostos e seus fetiches mais estranhos e entender sua percepção. A psiquiatria teria me caído bem. Recorri a um fórum multimidia mundial onde tudo é postado a todo tempo. Os casos já estavam lá, integrantes já tinham hackeado o rádio da polícia de Miami e colocado a dispor de quem se interessasse. Havia o medo de novos casos, haviam pessoas montando grupos de invasão ao hospital para matar as vítimas sobreviventes e assim encerrarem o vírus. Havia gente bem mais preocupada que eu.
          Foi necessário o CDC dos Estados Unidos enviar uma nota de alerta, dizendo que não havia até então um vírus capaz de "reanimar corpos inanimados". Descobriram que o motivo do primeiro caso era uma nova droga fortíssima, que ao ingerida elevava muito o calor do corpo até as pessoas perderem a sensibilidade a dor. Daí o homem ter sido achado nu e sido necessário seis balas para morrer e parar o ataque. Mas não seria isso uma espécie de zumbi? Então o segundo caso aconteceu.
Nesse ponto e com a curiosidade quase explodindo, fui atrás de mais. E se essas histórias todas não fossem tão irreais assim? Comecei a pesquisar, mas parecia alcançar lugar nenhum. Entrei em contato com pessoas do fórum, que foram me mostrando e indicando, até que um perguntou se eu já tinha acessado o "outro lado da internet". Ao dizer que não, passaram-me um programa adequado, que muda o IP a todo instante impedindo o rastreamento e abre um navegador próprio, possibilitando assim a entrada nessa "outra internet". Pesquisando um pouco achei que a parte da internet mais usada é toda aquela que poda ser rastreada e catalogada por sites de busca e afins, enquanto tudo do outro lado não. A começar pelo seu endereço composto por várias letras em total falta de nexo e sua terminação que não é em .com e em nenhuma conhecida.
         Entrei. E é aí que começa essa história.
         Nos primeiros passos recomendaram-me ingerir algo alcoólico pra relaxar um pouco, para digerir melhor o que viria a seguir. Não perguntaram meu nome, nem me disseram os deles. Pelo contrário, deram-me um pseudônimo com login e senha para acessar os mais diversos fóruns e os mais diversos assuntos que tinham aparência de html antiga, lá de 1995. Só sabia que ambos pertencem a um grupo de invasão hacker e trabalham desmascarando a identidade dos malfeitores do "outro lado". Uma breve explicação dizia que as palavras mais pesquisadas em sites de busca eram "sexo" e em segundo lugar "estupro" e daí eu já poderia tirar uma outra face das pessoas. Não estava preparado para o que estava por vir.
         Pensem num submundo, num beco escuro ou na falta de leis e censura. Pense em poder falar e fazer o que quiser, até aquele seu desejo mais íntimo. De colocar toda sua raiva pra fora, de comprar qualquer coisa, de fazer sumir e aparecer. Isso é o "outro lado da internet". Inicialmente me mostraram uma espécie de catálogo do saber, como uma Wikipédia, porém secreta. Lá tudo era descrito e catalogado de acordo com seu país e/ou seu tema. Todos, dos mais diversos. Temos pirateado todos os livros, todas as músicas, todos os filmes. Bibliotecas e mais bibliotecas inteiras ao dispor de um clique. Filmes raríssimos, cenas excluídas e centenas de terabytes de estudo. Sim! TERABYTES, o "outro lado" é 90% maior do que a internet que conhecemos. Muito bom para quem sabe e quer usar, se essa parte não fosse ínfima. 
         A primeira parada foram documentos ensinando as mais diversas coisas: como encontrar dados de uma pessoa usando apenas nome e endereço, como montar as mais diversas armas e bombas, como fazer venenos e também uma página dedicada a fotos estranhas. Levaram-me a um fórum "sleepy" onde homens contavam em detalhes suas experiências em fazerem sexo com pessoas dormindo, algumas naturalmente e a grande maioria por indução. Depois uma página de sado-masoquismo forte, de início permitido, mas depois nem tanto… E aí foi um poço sem fundo. Há um mercado negro de onde vendem de drogas a órgãos e também pessoas, tráfico humano. Sites de guerra com torturas explícitas em fotos e vídeos, principalmente em países do Oriente Médio. Assassino por encomenda. Estupros. Incestos. Câmeras instaladas em cadeias violentas. Fórum de cientistas e médicos que testam suas vacinas e doenças pela água de certas vizinhanças e colhem o dado de cada uma. Sites governamentais que ameaçaram rastrear minha localização (duas vezes), fóruns canibais onde colocavam fotos de suas vítimas e, acreditem, receitas de seus pratos prediletos. Existe até quem se oferece pra ser devorado, escolhendo a parte, horário e local romanticamente, como um encontro de amor.
        Já estava com eles por seis horas, quando me perguntaram se eu queria ir mais a fundo. Que aquilo ali ainda era pouco, havia mais. Pensei por um instante e resolvi ir adiante, que eu conhecesse logo tudo de uma vez, não imaginava coisas piores do que já tinha visto ali. Estava enganado.
        90% de todo o material de pedofilia sai dali. Zoofilia do mais diverso e absurdo tipo. Canibalismo dedicado a partes íntimas (o vídeo do homem comendo o próprio pênis com feijão ficará na minha mente por um bom tempo). Rituais das mais diversas seitas, com cenas dignas de um filme de horror. Ao me apresentarem um de necrofilia com humanos e animais, achei o vídeo do ator pornô gay. Um ato absurdo, unindo psicopatia+necrofilia+canibalismo num mesmo vídeo, ao som da mesma trilha do filme Psicopata Americano. Uma tentativa de Patrick Bateman levado as extremas, mostrando que foi tudo extremamente calculado. De repente vi que as histórias fantásticas não são tão fantasiosas assim e o que dificilmente acreditamos pode ser bem plausível. Disseram que ainda tinham de me apresentar o Coliseu, onde homens lutam até a morte e o fórum killer, onde para entrar é preciso enviar um vídeo seu matando alguém e há um ranking para a morte mais brutal. Preferi não ver, não mais.
        Já cansado após 12h vasculhando o esgoto da mente humana, vi a foto da vítima do Miami Zombie: um mendigo com rosto desfigurado e sem um olho, e aquilo já não me causou tão mal estar como antes, não depois de tudo o que eu tinha visto. Será que é esse o efeito? Começar a ver uma "normalidade" onde não tem? Não dizendo que todos tem potencial de assassinos sádicos, mas observando em pequenos atos, será que assim também passamos a ser insensíveis aos problemas e necessidades alheios? Aquele ato que magoa alguém, aquela "coisa errada" que de primeira gera apreensão, mas da segunda nem tanto. Foi um choque. Um choque pra repensar a vida, as atitudes e observar melhor quem está ao seu lado.   
          Esse relato pode ser fictício. Ou não. Histórias de taverna. 






sábado, 16 de junho de 2012

Os amores de Ariovaldo


Ariovaldo mal conseguia conter a excitação. Com o coração acelerado, sentia uma conhecida vertigem atravessar o corpo. Dividia um sofá de três lugares com Cleiton e Adalton. Sentados no chão, sobre almofadas, Bruno e Rafael jogavam Street Fighter. Enquanto via Guile dar uma surra em Ken, Ariovaldo pensou na Chun-Li. “Se eu escolher ela vai pegar mal”, refletiu. Decidiu pelo Blanka. “Dou umas apeladas e depois entrego a luta.” Com algumas rodadas de folga, Ariovaldo poderia se ausentar da sala sem deixar suspeitas.

Blanka tomou um perfect no segundo round. “Assim não dá, o Bruno é muito apelão”, reclamou Ariovaldo, fingindo desapontamento. Os outros riam. Passou o controle para Cleiton. “Vou dar uma mijada”, avisou. “Leva o meu”, gracejou Adalton. Ariovaldo nem ouviu. Mal sentia os próprios passos, incertos e vacilantes em direção ao banheiro – o banheiro da casa de Janaína. Sim, porque como todo amigo de infância que se preze, Bruno tinha uma irmã mais velha.

Primeiro amor
Janaína era a típica menina dos sonhos de filme norte-americano. Loirinha de olhos verdes, os cabelos longos sempre soltos e esvoaçantes como em um eterno comercial de xampu, a irmã de Bruno povoava os sonhos de Ariovaldo desde que ele se conhecia por gente. Na casa dele tinha até uma foto dos dois tomando banho juntos. Não havia dia em que Ariovaldo não olhasse para aquela imagem dos dois bebês com certa melancolia. Tinha a vizinha do lado como personagem principal de sua sessão da tarde particular.

Não que Janaína tenha sido sempre inatingível. A diferença de um ano entre os dois não impediu que eles tivessem uma infância em comum. Com o resto das crianças da rua, brincavam de taco, esconde-esconde, passa-anel, bate-manteiga. Sozinhos, brincavam de casinha. Enquanto o resto dos meninos jogava bola, Ariovaldo era um preocupado pai solteiro cuja filha estudava na mesma escola em que Janaína era a professorinha.

O tempo acabou por afastar os dois. Aos 14 anos, um a menos que Janaína, Ariovaldo havia sido rebaixado a amigo do irmão, de quem era um ano mais velho. Bruno era um rapazinho detestável, mas não havia outro jeito. Era a única forma de continuar por perto, de vez ou outra poder flagrá-la saindo do banho, cabelos ainda pingando, enrolada numa toalha. Não fosse a amizade com Bruno, Ariovaldo não teria sido o primeiro da rua a ver Janaína com o famoso vestido curto de alcinha, que ela usava sem sutiã. O mesmo vestido que, por obra do vento sul, mudou a sua vida.    

Trancado no banheiro
Ariovaldo estava parado em frente ao cesto de roupa suja. Não que tivesse dúvidas sobre o que iria fazer. Estava decidido. Lembrou-se do dia em que o vento sul levantou o vestido de Janaína. Respirou fundo. Com cuidado, tirou a tampa do cesto. Todos os barulhos daquele banheiro pareciam amplificados. “Uma camiseta do Pernalonga, uma cueca do Bruno, um calçolão da dona Marisa”, memorizou. Tudo teria que voltar para o lugar certo. Finalmente, entre uma camisa da Oktoberfest e outra do Figueirense, encontrou-a. Branquinha, com rendas sobre o elástico e um lacinho na frente, exatamente como se lembrava.

Olhava a calcinha com um ar solene. Segurando-a com ambas as mãos, examinava cada detalhe. O laço um pouco de lado, o fio solto na lateral, a pequena mancha amarelada na parte de dentro. Achou que fosse desmaiar. De súbito, passou a esfregar a calcinha violentamente no rosto. Aspirava com força, descompassadamente. Janaína invadia seus pensamentos em um turbilhão de imagens: seios empinados, bicos rosados, pentelhos aloirados. De repente, tinha dez anos e estava ao lado dela no banco da igreja. O vestido que ela usava na primeira comunhão era branco como a calcinha. Do alto, o Cristo crucificado tinha um olhar de reprovação.

Relacionamento sério
Bruno nunca teve um amigo tão fiel. Ariovaldo estava sempre por perto, nunca o criticava, aguentava todas as suas gozações. Marginal iniciante, Bruno tinha no vizinho um cúmplice silencioso. Um sujeito que nunca iria falar pra ninguém dos doces que ele roubava nas Americanas ou dos pequenos sadismos praticados contra gatos e cachorros do bairro. E Ariovaldo ainda lhe fazia as lições de casa. “Que bicho mais otário”, pensava. Bruno não conseguia entender o sorriso satisfeito do amigo. “Vai cagar de novo, porra?”  

Ariovaldo não poderia nunca ser confundido com um cheirador de calcinhas vulgar. Seu onanismo era cercado de rituais, cada punheta tinha a sua própria história. O enredo variava conforme o figurino. A calcinha vermelha que Janaína havia usado no aniversário de uma amiga, por exemplo, exigia um jantar à luz de velas. A branquinha de algodão, das aulas de tênis, pedia algo mais selvagem, como uma cachoeira ou um acampamento. Havia todo um universo dentro do banheiro de Janaína. 

Separação
Não conseguiu acreditar quando Bruno lhe falou da mudança. Brasília. “Que tipo de gente se muda pra Brasília?”, pensou. Com o olhar perdido, Ariovaldo se sentou no meio-fio. Lembrou-se da nova calcinha de Janaína, preta de rendinhas, pouquíssimas vezes cheirada. Estavam em novembro. Dali a dois meses faria um ano daquela primeira tarde no banheiro. A proximidade do solstício de dezembro foi outro detalhe que lhe doeu fundo na carne. O verão é a primavera dos cheiradores de calcinha. Ao seu lado, Bruno estava comovido com tamanha desolação. “Amigo é isso aí.”

No banheiro da própria casa, Ariovaldo olhava para a pequena peça de algodão. Havia roubado-a em sua última visita à casa de Janaína.  Depois de quatro meses, a clássica calcinha branca com rendinhas no elástico já tinha perdido o lacinho e o odor. Estéril, a pequena mancha amarelada lhe enchia de saudades. Guardou-a de volta no saquinho ziplock. Iria fazer companhia a quatro playmobils e duas dúzias de poemas depressivos na caixa de sapatos onde guardava suas mais caras lembranças. Era hora de partir pra outra.

Diarreia
O pequeno inventário de vizinhas era promissor. Obcecado por Janaína, Ariovaldo nunca havia reparado nas irmãs dos outros amigos. Baixinha de olhos azuis, a irmã mais nova de Adalton merecia uma visita. Aline, irmã de Cleiton, exalava experiência do alto de seus 19 anos. Rafael, o gordinho do final da rua, tinha em casa duas precoces gêmeas de 13 aninhos. Recobrado o ânimo, Ariovaldo repassava mentalmente o roteiro de suas visitas. O mundo lá fora, afinal, era um lugar cheio de possibilidades.  

Os novos amores duraram pouco. Não por falta de afinco de Ariovaldo, é verdade. Os outros amigos é que não tinham saco para tamanha dedicação. Além disso, achavam cada vez mais estranho aquele sujeito que passava horas no banheiro. Evitado por todos, Ariovaldo passou a ser conhecido como Diarreia. Em seu desespero, chegou a frequentar a casa de um vizinho de dez anos. Filho único, o japonesinho tinha uma mãe das mais ajeitadas. Ariovaldo já se imaginava em um duelo com o verdureiro pelo amor de dona Keiko quando foi educadamente proibido de voltar à casa dos Tanaka.

Funcionário do mês
Ariovaldo era o orgulho da família. Havia começado a trabalhar numa lavanderia na adolescência, pagou o cursinho pré-vestibular do próprio bolso. Primeiro a chegar e último a sair, ainda na faculdade, tornou-se gerente. Agora, aos 29 anos, era dono da sua própria rede de lavanderias. Descobriu no ramo a sua vocação. Tinha uma seção especial para peças íntimas. Cuidava delas pessoalmente. Chegou mesmo a ser convidado para prestar consultoria a uma fabrica de sabão em pó. “E eu não dava nada por esse guri”, reconhecia o pai.

Os anos de lavanderia tornaram Ariovaldo um homem vivido. Conheceu todo tipo de mulher. Apaixonou-se por algumas, desiludiu-se com outras. No começo, via em cada calcinha a esperança de um novo amor. A universitária ruiva que levaria para um festival de cinema pós-iugoslavo, a mocinha tímida com quem dividiria um sundae, a jovem prostituta que tiraria da vida. Do amor romântico, passou a uma fase mais promíscua. Sorria envergonhado ao se lembrar da grande suruba que fez com os collants de uma companhia de balé. Mas isso também tinha ficado para trás.

Cheirar calcinhas não o animava mais. Ariovaldo já não tentava adivinhar os aromas de cada nova cliente pelo rosto. Havia abandonado até um relacionamento mais sério, coisa de uns cinco anos.   No dia em que, numa quarta-feira de cinzas, não se apressou em revirar a fantasia de uma passista, notou que o negócio era sério. Definitivamente faltava alguma coisa na sua vida. Sozinho, em casa, retirou a fita crepe que envolvia a caixa de sapatos das suas lembranças. Com cuidado, abriu o amarelado saquinho ziplock. Sentiu a mesma vertigem de 15 anos atrás ao passar no rosto a calcinha branca com rendinhas no elástico. Precisava rever Janaína.

O reencontro
Ariovaldo ainda pensava em uma desculpa para a visita quando a porta do apartamento da 409 Norte se abriu. Aos 30 anos, Janaína estava mais linda que nunca. O vestido podia não ser aquele mesmo curto de alcinha, mas ela continuava dispensando o sutiã. “Quanto tempo, Ariovaldo”, derretia-se. “Quando mamãe me contou que você estaria na cidade eu nem acreditei. Como estão as coisas? Fiquei sabendo que você é dono de uma rede de lavanderias”, continuava. Ariovaldo tinha os olhos vidrados no pescoço de Janaína. Sempre escondido pelos longos cabelos loiros, agora ele era revelado por um coque. Nunca um pescoço lhe pareceu tão erótico. “Bem que eu poderia começar a cheirar cachecóis”, pensou.   

Estava sentado na sala de Janaína há mais de duas horas. Recém-divorciada, ela contava a história de sua vida. Em detalhes.  Falou do ex-marido que não valia nada, do lindo casal de filhos que cresceria sem pai, do irmão preso na Papuda – “Quem poderia imaginar?” –, do trabalho burocrático em um ministério qualquer. Ariovaldo se lembrou com saudades do tempo em que sua ida ao banheiro de Janaína dependia apenas do infortúnio de Blanka. “Estou devendo uma ida a Florianópolis. Quem sabe eu não apareço pra te visitar, né?”, sugeriu. Ariovaldo limitou-se a assentir com a cabeça.

Depois de quatro xícaras de café e três copos d’água, Ariovaldo realmente precisava ir ao banheiro. Nunca pensou que, depois de tantos anos, a primeira coisa que faria no banheiro de Janaína seria mijar. “Fazer o quê?”, resignou-se. Estava baixando a tampa da privada quando olhou através do box.  Ariovaldo empalideceu. Como um louco, pôs-se de joelhos e começou a revirar o cesto de roupa suja. Não queria aceitar a verdade. Exausto, sentou-se no chão. Na sua frente, a calcinha lavada pendurada na torneira do chuveiro. Tirou do bolso a calcinha branca com rendinhas no elástico. Usou-a para secar suas lágrimas.

Daniel Ludwich é um ultra-romântico confesso, mas jura que só revira o cesto de roupa suja da própria mulher


quinta-feira, 14 de junho de 2012

Noite nas escadas...



 Sento nos degraus do 24 horas. A cabeça roda. Parece se perder na fumaça que sai trêmula da boca seca de dor. Observo-a se desintegrando no ar sereno. Desintegro-me. Só os pulmões se aquecem. A noite é amena, mas a pele se engelha no continente gélido da alma transtornada. Tremo. Tento chorar (eu preciso chorar!). Só o coração lacrimeja, em vermelho sangue. Sangro. Antes sangrassem os olhos! E nenhum líquido escorre o rosto para espalhar o desespero que me sucumbe.
- Eleonora !!!!! – grito em silêncio, atormentado...
Tento incomodar os amigos em ligações e mensagens de texto. Ninguém escuta. É madrugada de segunda-feira e a cidade dorme cansada. Exausto, resolvo entrar no supermercado para comprar cerveja. Escolho duas bavarias, que é pra beber com amargura. Retorno aos degraus e me deparo com a escadaria tomada por vagabundos. Procuro um local para me isolar e beber solitariamente. Acendo meu cigarro e termino por me denunciar. Aproxima-se o primeiro. Talvez branco, talvez ruivo, impossível era definir se a pele avermelhada e manchada vinha do DNA ou do sol escaldante da labuta opressora. Pede-me um cigarro.
- Só tenho palheiro.
- Coisa boa! Esse é do bom! – agradece com um toque em meu ombro.
Um silêncio momentâneo...
- Tu tá bem? – minto com a cabeça em afirmação.
Os olhos me entregavam, mas o vagabundo soube entender a economia nas palavras. Lado a lado as fumaças se encontravam em baforadas longas, até se perderem no infinito escuro. Dez minutos sem ruídos e o diálogo é retomado com uma proposta tentadora:
- Olha! Eu tô sem maconha aqui, mas se tu quiser pedra eu posso te conseguir alguma...
Fico estático. Por impulso veria satanás naquela noite, mas um fio de razão me impede de ir conhecer o poço fundo e ardente. Digo, então, ao moço maltrapilho, que estava satisfeito com a cerveja quente...
- Você é que está certo. A gente só precisa de um pega pra virar escravo da desgraçada. Mas eu vou te dizer uma coisa. Ela é boa. Essa maldita tem o poder de nos fazer deus e diabo em segundos de delírio intenso.
Galego era daqueles malandros de boa lábia. Inteligente, filósofo da pilantragem, conhecia História e contava estórias para quem quisesse ouvi-lo com paciência. Tinha pseudônimos. Era conhecido também como Marx, e apresentou-se a mim dessa forma. Sabia das utopias do velho barbudo e o tinha como profeta dos fodidos. Atento, ouvi seus monólogos por alguns instantes. Falou-me do inconsciente humano, das músicas de Raul Seixas, das trevas noturnas e das luzes que iluminam o homem...
- Tá vendo essa luz que vem da marquise? Ela ilumina tudo isso aqui, nos permitindo enxergar. Há luz por todo lado, mas a gente tem que ser como um laser, pra clarear o ponto certo. O homem, pra ser grande, tem que ter foco...
Nesse instante aproxima-se mais um vadio, o homem das muletas. Não soube seu nome, mesmo por que era conhecido por todos pela sua condição: um aleijado, um mendigo de muletas. Parecia amargurado, muito embora o palheiro que me tomou tenha lhe trazido certa calmaria. Não o suficiente para satisfazê-lo, é bem verdade. Precisava de cachaça, a santa água. Propõe, então, que juntássemos moedas para uma pinga barata.
- Quanto é a bendita? – pergunto interessado em beber algo corrosivo.
- É quatro reais, acabei de olhar lá dentro – responde instantaneamente o ébrio manco.
Ofereço a bebida em agradecimento à boa companhia. Galego se candidata a comprar e lhe entrego uma nota de cinco. A essa altura da madrugada estávamos em seis ou sete, quando então se aproxima Espiga e seu fiel escudeiro. O cão negro arrasta uma pata, mas ainda assim desvia de toda malandragem para, com ardor, subir dez degraus para se deitar ao meu lado. Os pêlos brancos ao redor dos olhos contrastavam com a capa escura, denunciando a fadiga das andanças diárias. Acaricio-o e ele me olha com olhos tão ternos que ameaço chorar (eu preciso chorar!). Engulo seco as gotas salgadas a fim de não demonstrar fraqueza...
- Helena!!!!! – grito em silêncio, atormentado...
Só o cão me entende...
Espiga não tinha os dentes da frente, mas sorria com muita beleza. Tinha o corpo esguio e carregava latas de alumínio num carrinho furtado de supermercado. A pilantragem me esvazia a carteira de cigarros e levanto para comprar mais. Espiga me impede.
- Eu tenho uma carteira aqui. Você fuma Derby? – indaga com simplicidade.
- Claro! – minto sem pestanejar.
Retiro do maço um cigarro amassado.
- Pode pegar mais um! Aqui é tudo de todo mundo...
O semblante de Espiga me abre um sorriso (há solidariedade na pilantragem). Galego finalmente retorna com a 51 e alguns copos descartáveis. Não me devolve o troco de um real (há malandragem na pilantragem). Não ligo. A mesa está montada. Derby e 51! Uma fossa! Um sonho!
- Um brinde às nossas mazelas! – propõe Galego aos mendigos boêmios.
Todos respondem em uníssono enquanto a cachaça queima a garganta no gole virado de vez única.
- Esse mundo é um mundo de mentiras! – grita Galego com uma risada sombria.
- Lá em cima é tudo terra de porco! – blasfema babando o homem das muletas.
- Não fala assim não! Se a gente tá aqui, a gente tem é que agradecer... – pondera Espiga com ternura infinda.
Galego se senta ao meu lado. Canta versos de música e me abraça em devaneio. Observo-o sorrir e contar estórias em frases bem articuladas. Fala dos tempos em que era quisto por todos, das viagens, das putas enlouquecidas que o arranhavam e o empobreciam. Atrevo-me a perguntar:
- E o que te faz estar aqui, Marx?
A pergunta o cala. O sorriso aberto estreita-se e o olhar eufórico fenece. No silêncio triste nossos olhos fitam-se em comunhão e sofrimento. Não era preciso dizer nada. As notas mudas do pilantra ecoaram longe na amargura da lembrança...
- Uma mulher... – balbuciou melancólico.
O olhar desvia-se e Galego em solavanco pede um novo brinde.
- Às mulheres! Rainhas de nossa desgraça!
Todos brindam. Os mendigos se alegram e começam a gritar nomes incessantemente.
- À Amélia! Àquela ingrata que me abandonou – bradou o homem das muletas.
- À Marlene! A melhor boqueteira do P-sul! – vibrou um outro.
- À Mariazinha! Que tá no céu agora rezando por mim... – clamou nostálgico o bom Espiga.
Solange, Valdenice, Joana, Rita, Luzia... Todas devidamente lembradas na confraria dos pilantras. Entre nomes de mulheres e cantorias escuto as desventuras de cada um. Meu corpo se acalenta. Tremo. Espiga me fala sorrindo de Mariazinha, de como era boa, e os meus olhos se encharcam. Reluto em chorar (eu preciso chorar!).
- Berenice!!!!! – grito em silêncio, atormentado...
Enquanto nos enlouquecemos Álvares se contorce no leito sepulcral, lamentando não ter vivido mais duas centenas de anos para brindar conosco. Solfiere, Bertram e os taverneiros de outrora invejariam esse encontro. Mendigos da madrugada, famintos de donzelas e sedentos de cachaça. Spleen e Derby! Uma fossa! Um sonho!
Ameaço levantar. A pinga seca me corrói o estômago. Seco-me. Levanto atônito sustentando o vômito. Corro para um canto solitário, tentando me camuflar. Galego percebe e se põe ao meu lado. Despejo na terra desidratada o maná que vem do inferno. O cheiro fétido não incomoda o amigo. Suo frio. Transpiro a acidez da melancolia. Deito e deixo que o cão me lamba e se alimente da iguaria divina. Galego sorri da situação...
- É meu amigo...51 não é pra qualquer um não. É bebida de vagabundo, de quem mora com o capeta...
Espiga me dá de sua água. Todos riem do meu estado. Rio com eles. Mais um brinde e decido ir embora. Despeço-me de cada um com um abraço forte, fraterno. Convidam-me para voltar sempre e retribuo com mais uma 51 de cortesia. Um latido me interrompe. Acaricio o cão uma última vez...
- Qual o nome dele?
- Esse aí é o Lobão, meu companheiro... – responde Espiga cheio de orgulho.
Emocionado deixo o 24 horas e caminho cambaleante de volta a casa, ainda desacreditado da noite apoteótica que tivera, da noite nas escadas...
Espiga, Galego...Homens de muletas! Bêbados mutilados da madrugada!...
Profundamente ébrio abro a porta e percebo que a velha vitrola esquecida ligada arranhava a voz lânguida de Vicente Celestino. Faço-o cantar novamente em grande altura. Resgato da parede próxima ao leito um retrato. Observo-a pela última vez. Tão pálida! Tão linda! Deito na cama beijando enlouquecidamente a imagem dela. Enterro-a no criado-mudo. A cabeça roda. Ameaço chorar (eu preciso chorar!)
- Letícia!!!!! – choro em silêncio, embriagado...




Djallys Dietz é daqueles embromadores da madrugada. Bebe só e não fuma Derby. Quis ser tudo e eventualmente, quando ébrio, o é. E assim vai cambaleando... até o segundo em que o câncer o encerrar.



O Ébrio
(Vicente Celestino)

Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer
Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou
Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou
Só nas tabernas é que encontro meu abrigo
cada colega de infortúnio é um grande amigo
Que embora tenham como eu seus sofrimentos
Me aconselham e aliviam meus tormentos
Já fui feliz e recebido com nobreza até
Nadava em ouro e tinha alcova de cetim
E a cada passo um grande amigo que depunha fé
E nos parentes... confiava, sim!
E hoje ao ver-me na miséria tudo vejo então
O falso lar que amava e que a chorar deixei
Cada parente, cada amigo, era um ladrão
Me abandonaram e roubaram o que amei
Falsos amigos, eu vos peço, imploro a chorar
Quando eu morrer, à minha campa nenhuma inscrição
Deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar
Este ébrio triste e este triste coração
Quero somente que na campa em que eu repousar
Os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
E suas lágrimas de dor ao peito amigo 




quarta-feira, 13 de junho de 2012

Je t'attends


             Então, escrever em um dia tão especial como o dia dos namorados pra quem namora em um blog ULTRAROMANTICO. Contarei então uma história, um conto, historietas de Alice. Alice e Dimitri. Dimitri e Alice. Porque tudo parece uma experiência francesa? 



Alice e Dimitri


Alice come borboletas. Borboletas que passam o corpo nu de uma antiga Punk reprimida. Respira. Recolhe-se. E ele, Dimitri, aquele que não sabe. Sinal, vestígio, prova. Alice apaixonada. Insegura patética. O patético poético, a poesia chula de falar de si. Chá. Chá. Café. Café. Respira. Suspiro. Empírico jeito de amar. Empório de borboletas. Emposta voz silêncio flutuante. Fluem borboletas e não dissipem. Não dispersem. Disse Alice, sim. Eu vou. Vai saracoteando, dançando nas pontas das pedras. Brim Pelitizado Alice se cobre cor cobre. Cobra beijos. Seios. Meios para borboletas. Retira meia sombria. Sóbria. Pele macia. Branca. Borboletas em Alice. Alice. Dimitri. Diz. Disse. Diga. Di. Dimitri. Fica. Fim.

Gostou?
Visite: ashistorietasdealice.wordpress.com


Oque dizer sobre ultra romances, sobre contos de amores e corações partidos? Um dia após o dia dos namorados. Encanta-me o ponto iminente. Ao beijo.  Ao toque. Ao sexo. A poesia, os detalhes. O flerte.  Deixo então uma música. Essa que tem passado pelos meus momentos iminentes.



Escolho então um trecho:

Je t'attends là, je t'attends là,
Je t'attends là sous les étoiles,
Le ciel est si beau.
Et j'entends le chant de mon marin,
Sur l’océan, sous une pluie de souvenirs.
Alors je m'endors,
Bercée par les voix et vents du nord,
Et je rêve de ton sourire


Post by: Elise Hirako 



domingo, 10 de junho de 2012

Quadra do Beira-Mar


Como um bom moleque da periferia, passei boa fase da minha meninice na rua, mais precisamente jogando bola na “quadra do Beira-Mar”. Fugia diariamente dos deveres escolares para uma partida de “dez ou dois” e pedia quinta próxima feliz da vida na expectativa de passar a noite sem apanhar de ninguém. Nem dos moleques mais velhos de rua, nem da minha mãe, em casa.

A quadra ficava numa praça em frente ao prédio residencial Beira-Mar, que tinha uma igreja evangélica no subsolo. Tirando o culto e uma padaria solitária, tudo era rodeado por botecos, sem contar as drogas que eram vendidas como balinhas (vide mapa). Eram bares para todos os gostos. Maiores, menores, cheios, vazios, sujos, não tão sujos, alguns com sinuca, outros truco, e uma variedade inconcebível de artifícios alcoólicos.  Ali eu formava o meu caráter diariamente.


O lugar era tomado por bêbados, que mesmo com esposas em casa, eram casados com a boemia. Velhos cansados, barrigudos com artérias entupidas e prazo de validade estourado, não raro alcoólatras. Entre eles, meu pai. Todo dia papai fazia hora extra nos bares da praça. Enquanto eu imitava o Romário na pelada, minha verdadeira referência masculina estava ali do lado embriagando-se com os amigos. Eu queria ser um deles, e era só questão de tempo. O ciclo natural da vida era um dia acabar estacionando naqueles balcões e dali não sair jamais. Não era uma escolha, mas sim uma realidade.

Meu pai transitava por várias pocilgas da praça, mas sua preferida era a do Zé Mineiro. Conterrâneos, cruzeirenses e parceiros de pescarias, era ali que o velho se sentia em casa, talvez até mais do que lá em casa. No intervalo da peleja, eu ia falar com ele e pegar água pra galera. E do convívio diário vem a familiaridade.

Em um lugar em que moleques eram desprezados pelos bêbados, eu era o filho do homem! Meu pai era um bancário burocrata que dava crédito para aquele bando de comerciantes alcoolizados. O respeito que os encachaçados tinham por ele sobrava um pouco para mim. Eu entrava no Zé Mineiro sozinho e saia com uma coca-cola sem pagar! Eu era foda!

Tentava usar isso ao meu favor para me impor sobre os moleques e me aproximar, em vão, das meninas do Beira-Mar. Eram pirralhas que desciam em cardume do prédio e ficavam nos olhando de longe. Eu sempre retribuia o olhar com altas doses de platonismo. Na minha mente elas estavam apenas de calcinha, ou nuas, e tinham o corpo da Emanuelle, rainha do soft porn, deusa dos cabelos crespos que me fazia dormir mais tarde no final de semana e me levava para o mundo mágico e emocionante da masturbação pré-internet. Minha timidez nunca me permitiu passar daquela troca de olhares.

A praça mudava um pouco no domingo à noite, quando os bêbados passavam com suas esposas e filhos em busca de redenção no culto evangélico do Beira-Mar ou na missa da paróquia São José, que ficava mais longe. Era sagrado e profano no mesmo olhar, na mesma praça. Os mais apegados ainda saudavam de longe os pagãos que não largavam o bar nem para pedir perdão.

Pausa para o Rock

O som rolava sem parar na praça com aquela classe típica da periferia que ditou os anos 90. Muito pagode, funk, axé e sertanejo. Leandro e Leonardo eram reis e Rap Brasil era o funk “bom” do cara que só queria ser feliz. Tinha uns três moleques com apelido de Molejo. Só Pra Contrariar era obrigatório. Gostava da ideia de me afogar num copo de cerveja, para encontrar nela uma solução. E nesse contexto musical unânime, seguia eu convencido pela massa.

Sei que a bíblia já salvou muita gente, mas o que me redimiu foi O Descobrimento do Brasil. Ganhei esse CD de uma prima fã de Legião Urbana (não de rock, só de Legião). Ouvi uma vez, achei uma merda. Outra vez, tinha algo ali. Quando me dei conta, o CD tocava repetidamente. Em alguns dias já sabia cantar “Perfeição” e “Vamos Fazer um Filme” sem precisar do encarte.

Como um iniciante se preze, decorei “Faroeste Cabloco” em dois dias, mesmo sem saber o que era “roconha”. “Ascendente em escorpião” desconheço o significado até hoje. Adorava a parte do “general de dez estrelas, que fica atrás da mesa com o cú na mão”. Depois veio Titãs, Paralamas, Beatles, e por aí foi. Não precisa dizer que aquela porra toda de antes não fazia mais sentido nenhum.

Voltando para o bar

O tempo passava e a dinâmica da praça era a mesma, mas não pra mim. Talvez as drogas tivessem aumentado, pois de vez em quando tínhamos que jogar bola sob a vigilância de vários policiais e, do nada, um conhecido traficante sumia. Eu não me importava, até porque o meu jogo estava cada vez mais parecido com o do Romário. O problema é que o ensino médio estava chegando e minha mãe não acreditava mais nas minhas desculpas para ficar na rua a noite toda.

Um dia cheguei em casa e vi uma camisa oficial do cruzeiro na sala. Agradeci meu pai, feliz da vida, e descobri que a jóia não era minha, mas um presente de aniversário para o Zé Mineiro. Argumentei que ele não ligava pra isso, pois era um cara simples e camarada. A camisa podia ficar pra mim. Foi quando meu pai informou que o Zé estava em internado no hospital com cirrose crônica. Cirrose? Que clichê! O dono do bar que morre de cirrose é o pior clichê da vida! Pois aconteceu. Zé Mineiro morreu alguns dias depois e, no auge da tristeza do meu pai, a única coisa que consegui falar pra ele foi: “Pai, você chegou a dar aquela camisa do Cruzeiro pro Zé?”.



Guilherme Rosa é um bancário burocrata como o pai, mas sem um pingo do respeito que o velho tinha.