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domingo, 20 de abril de 2014

Domingo é dia de missa


Neste sagrado domingo de páscoa, decido abster-me dos meus impulsos carnais e autorais e de quaisquer influências estéticas/espirituais violentas, malévolas ou subversivas, e devoto meu primeiro post neste blog a ser o bom cristão que me ensinaram a ser, em respeito a todas as hóstias que já caguei e a todas as punhetas que já confessei, citando um dos meus trechos prediletos da Bíblia, e uma belíssima oração/canção.



"Quando uma mulher, com voz de soprano, emite suas notas vibrantes e melodiosas, ao ouvir essa harmonia humana meus olhos se enchem de uma chama latente, e lançam fagulhas dolorosas, enquanto que em minhas orelhas parece ressoar o fragor da canhonada. De onde pode vir essa repugnância profunda por tudo o que tem a ver com o homem? Se os acordes se desprendem das fibras de um instrumento, a percepção só transmite a meu ouvido a impressão de uma doçura capaz de fundir os nervos e o pensamento; uma dormência inefável envolve, com suas papoulas mágicas, como um véu que filtra a luz do dia, a potência ativa dos meus sentidos e as forças vivazes da minha imaginação.

Contam que nasci entre os braços da surdez! Nas primeiras épocas da minha infância, não ouvia o que me diziam. Um dia, pois, cansado de calcar com os pés a trilha abrupta da viagem terrestre, e de seguir, cambaleando como um bêbado, através das catacumbas obscuras da vida, levantei vagarosamente meus olhos melancólicos, rodeados por um grande círculo azulado, para a concavidade do firmamento, e ousei penetrar, eu, tão jovem, nos mistérios do céu! Nada encontrando do que procurava, ergui minhas pálpebras aterradas mais para cima, ainda mais para cima, até enxergar um trono, formado por excrementos humanos e ouro, sobre o qual reinava, com um orgulho idiota, o corpo recoberto por um lençol feito de trapos não lavados de hospital, aquele que se intitula a si mesmo de Criador! Segurava na mão o tronco apodrecido de um homem morto, e o levava, alternadamente, dos olhos ao nariz, e do nariz à boca; uma vez na boca, adivinha-se o que fazia. Seus pés mergulhavam em um vasto charco de sangue em ebulição, em cuja superfície se erguiam, de repente, como tênias através do conteúdo de um penico, duas ou três cabeças prudentes, que logo se abaixavam, com a rapidez da flecha; um pontapé, bem aplicado sobre o osso do nariz, era a recompensa já sabida pela revolta contra o regulamento, ocasionada pela necessidade de respirar em outro ambiente. Até que, nada mais tendo à mão, o Criador, com as duas primeiras garras do pé, agarrou outro mergulhador pelo pescoço, como por meio de uma tenaz, e o ergueu no ar, sobre o lodo avermelhado, molho delicado! Com esse, fazia o mesmo que com o outro. Devorava primeiro a cabeça, as pernas e os braços, e por último o tronco, até que nada mais sobrasse; pois roía seus ossos. E assim prosseguia, durante as outras horas da sua eternidade, sua refeição cruel, mexendo seu maxilar inferior, que mexia sua barba cheia de miolos. Leitor, esse último detalhe não te traz água à boca? Não é qualquer um que come um tal miolo, tão gostoso, bem fresco, que acaba de ser pescado a menos de um quarto de hora, no lago dos peixes. Os membros paralisados, a boca muda, contemplei por algum tempo esse espetáculo. Finalmente, meu peito oprimido não podendo expulsar com suficiente rapidez o ar que dá a vida, os lábios da minha boca se entreabriram, e eu soltei um grito… um grito tão lancinante… que eu o ouvi! Os entraves da minha orelha se desataram de uma maneira brusca, o tímpano rangeu sob o choque dessa massa de ar sonora empurrada para longe de mim com energia, e aconteceu um fenômeno novo no órgão condenado pela natureza.

Eu acabava de ouvir um som!

Um quinto sentido se revelava em mim! Mas que prazer poderia eu encontrar em tal descoberta? Desde então, o som humano só chegou a meus ouvidos com o sentimento da dor que engendra a piedade por uma grande injustiça. Quando alguém falava comigo, lembrava-me do que havia visto, um dia, acima das esferas visíveis, e a tradução dos meus sentimentos sufocados em um uivo impetuoso, cujo timbre era idêntico ao dos meus semelhantes! Mais tarde, quando conheci melhor a humanidade, a esse sentimento de piedade juntou-se um furor intenso contra essa tigresa madrasta, cujos filhotes empedernidos só sabem praguejar e cometer o mal. Audácia da mentira! dizem que o mal só existe neles em estado de exceção!…

Agora acabou, há muito tempo; há muito tempo não dirijo a palavra a ninguém. Ó vós, seja quem fores, quando estiverdes a meu lado, que as cordas da vossa glote não deixem escapar qualquer entonação; e que não procureis, de modo algum, fazer que eu conheça vossa alma com a ajuda da linguagem. Observai um silêncio religioso, que nada interrompa. Eu o disse, desde a visão que me fez conhecer a verdade suprema, o bastante de pesadelos sugou avidamente minha garganta, pelas noites e pelos dias, para que ainda tivesse a coragem de renovar, mesmo em pensamento, os sofrimentos que experimentei nessa hora infernal, que me persegue sem trégua com sua lembrança. Ah! quando ouvirem a avalancha de neve tombar do alto da fria montanha; a leoa a lamentar-se, no deserto árido, pelo desaparecimento dos seus filhotes; a tempestade cumprir seu destino; o condenado mugir, na prisão, na véspera da guilhotina; e o polvo feroz narrar, às ondas do mar, suas vitórias sobre os nadadores e os náufragos, dizei, essas vozes majestosas não são mais belas que o riso de escárnio do homem?"

Md 2:8 (hereticamente mutilado e adaptado)





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